I
Tal como Aristóteles a nomeia[1] na Ética a Nicómano, a eudaimonia não é necessariamente relacionável com a ideia de prazer, mas com um conceito de felicidade para o qual concorrem as ideias de “fazer bem” e de “viver bem”. Contudo, “viver bem” ou “fazer bem”, não são circunstâncias inibitórias de uma valorização ética das acções humanas. Pelo contrário, Aristóteles considera que “viver bem” e “fazer bem” são o resultado do exercício de uma vida em que nada falta. A ideia de felicidade, portanto, é aquilo que torna possível um sentido completo para as coisas, uma determinação em busca de um estado mais complexo de evolução pessoal. A felicidade, entendida deste modo, corresponde a uma aspiração, mais do que em se obter satisfações provenientes dos instintos imediatos do prazer, em ser-se cada vez melhor. Num certo sentido, a felicidade pode ser entendida como estímulo para a transcendência. Isto é, na medida em que, por efeito de uma aspiração, alguém é capaz de adquirir uma maior compreensão de si próprio, bem como um estádio mais adiantado da sua formação pessoal, torna-se diferente, susceptível de, através da aquisição de uma forma de conduta, se transformar num outro, que supera a sua condição anterior. Sendo assim, este conceito pressupõe uma demanda e é capaz de disciplinar e orientar a conduta humana.
Em The Discovery of the mind[2], ao afirmar que “de acordo com a teoria eudaimonística de ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da infelicidade”, Bruno Snell sugere que à ideia de felicidade pode associar-se, não apenas uma ética, mas também uma necessidade de fazer escolhas e de estabelecer estratégias.
De qualquer modo, a felicidade, conforme afirma Sócrates, corresponde a uma demanda de natureza ética, na medida em que ser-se feliz pressupõe um entendimento específico, segundo o qual a verdadeira natureza das coisas não reside no domínio dos sentidos, mas no do entendimento que delas fazemos. Para que isso se verifique, é necessário um distanciamento do mundo das aparências e, a este respeito, no Fédon, Sócrates afirma que “sempre que a alma faz uso do corpo para se lançar em qualquer indagação, utilizando a vista, o ouvido ou qualquer outro meio sensorial (e utilizar os sentidos que significa senão utilizar o corpo?), eis que este a arrasta para as realidades em contínuo devir; e quanto a ela, por aí erra, mergulhando como ébria na perturbação e na vertigem, pois tal é a natureza das coisas a que se apega”[3].
Destas palavras resulta claro que a distinção entre corpo e alma faz emergir a ideia de que a alma constitui aquilo que no homem é imperecível, contrariamente àquilo que acontece relativamente ao corpo. Sendo assim, é no domínio da alma que tem lugar a procura da felicidade. Só a alma pode permitir a transcendência, na medida em que o bem e o belo nela encontram acolhimento, já que, ao nível conceptual não estão sujeitos à erosão dos corpos. Daqui resulta que a ideia de liberdade apenas pode ser entendida em todas as suas dimensões no domínio do pensamento, da alma.
Mesmo assim, existe um corpo, que deverá ser considerado como marca de uma passagem, como cunho a ter em consideração quando nos referimos a aspectos como a virtude ou a felicidade. Isto é, num certo sentido, só tem razão de ser a demanda da felicidade, na medida em que a uma alma “perpétua” se coliga um corpo corruptível. A este respeito, Sócrates afirma que “o comum das pessoas está, provavelmente, longe de presumir qual o verdadeiro alvo da filosofia, para aqueles que porventura o atingem, e ignoram que a isto se resume: um treino de morrer e de estar morto”.[4]
Esta passagem em Platão, propõe várias reflexões acerca do alcance da vida e da morte, bem como do modo como a estes dois contrários – que, nos termos de Platão, implicam a imortalidade da alma – se parece associar uma concepção de treino de morrer como treino para aceitar a condição das coisas transitórias, em si mesmas. Da forma como a questão se nos apresenta, podemos inferir que a vida consiste numa aprendizagem, numa complexa aprendizagem que tem por objectivo a preparação para a morte, bem como a aceitação da ideia de morte enquanto momento último e simultaneamente transitório, do corpo e da alma respectivamente.
Com efeito, o desprendimento de Sócrates perante a sua própria morte é resultado de uma concordância entre os termos através dos quais ele enuncia a sua concepção da existência e uma atitude que se apresenta como exemplar. Nos termos de Sócrates, uma linguagem só se tornará exemplar se a ela estiver associado um procedimento que a não contrarie. Só deste modo, só agindo em conformidade com a linguagem, a alma será capaz de se libertar depois da morte corporal. Esta concepção de morte, enquanto fonte de satisfação futura da alma, contém em si mesma, contudo, a raiz de uma atitude que, em vez de limitar as acções humanas, subjugadas à fatalidade da morte, antes sugere uma vitalidade, uma capacidade, uma propensão para exercer a vida de acordo com a definição de harmonia que no próprio Fédon se apresenta, enquanto projecção da alma para além da circunstância corpórea.
Neste sentido, «tornar-se melhor» passa a ser a característica da excelência e da virtude próprias daqueles que aspiram à felicidade. Mesmo assim, a felicidade, nos termos de Sócrates, não é uma mera aspiração, mas antes uma aquisição, feita por etapas, de uma maneira de funcionar perante a vida e de transcendência. Quando afirma, na Apologia de Sócrates, que “temer a morte, (...) não é mais do que julgar ser sábio sem o ser, porque é julgar saber o que não se sabe”[5], Sócrates argumenta que não se pode recear aquilo que se desconhece e que, na perspectiva de que vida e morte se interseccionam, a morte, entendida como precursora da vida, não pode ser temida. O “treino de morrer” que a vida constitui, passa a ser entendido também como o exercício para atingir uma finalidade última: a felicidade, apenas susceptível de ser alcançada através do encontro com as almas do outro mundo, tal como afirma na seguinte passagem do Fedon:
... creio bem que não é de dor que elas [as aves] cantam, e o mesmo digo dos cisnes; antes julgo que, como aves que são de Apolo, possuem o dom de adivinhar e, antevendo os bens que os aguardam no Hades, por isso cantam de júbilo como jamais em vida cantaram, nesse dia em que morrem[6].
Esta visão platónica, segundo a qual, se sugere que só depois de termos morrido poderemos saber se teremos sido felizes, parece aproximar-se da visão de felicidade que podemos extrair do Eclesiastes. Com efeito, a partir do momento em que no texto bíblico se afirma a completa incapacidade do homem para alterar ou para produzir seja o que for apenas porque esses atributos só são acessíveis a Deus, a existência dos homens limitar-se-á a “correr atrás do vento”[7]. Sendo assim, a felicidade é um lugar inacessível aos homens que apenas poderão aspirar a usufruir das coisas fugazes que a vida lhes proporcione. A comprovar esta afirmação, passo a citar o Eclesiates, capítulo 1, versículos 8-9:
Toda a explicação fica a meio, pois o homem não consegue terminá-la. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se farta de ouvir. O que aconteceu, de novo acontecerá; e o que se fez, de novo será feito: debaixo do sol não há nenhuma novidade.
Estas palavras de Coélet propõem, por oposição, o caminho da acção como solução para a monotonia e para o enfado. Ao lermos o Eclesiastes, será possível confrontarmo-nos com a ideia de que de nada serve a pretensão de criar, na medida em que ao homem esse desígnio se encontra fechado. De nada nos serve, portanto, sonhar com eventuais realizações terrenas, na medida em que essas apenas podem ser concretizadas por acção divina. Curiosamente, o remédio que o autor do livro nos recomenda é, por um lado, o temor e a obediência a Deus, e, por outro, a prática do bem, amar o próximo. Além disso, numa outra passagem, a felicidade é apresentada como circunstância susceptível de ser alcançada através da concretização das necessidades elementares de subsistência. Quando se afirma que “a felicidade do homem está em comer e em beber, desfrutando o produto do seu trabalho”[8], o discurso apontará, de qualquer modo para algo que se aproxima daquilo que Aristóteles afirma na Ética a Nicómano acerca de felicidade. Nesta obra[9], ele afirma que “a felicidade é aparentemente uma coisa completa e auto-suficiente, desde que seja o fim das coisas perseguidas pela acção”.
Embora a passagem do Eclesiastes a que me refiro inclua a ideia de que o produto do trabalho, bem como tudo aquilo que se possa obter na vida, provém de uma acção divina, o certo é que essa mesma passagem sugere uma satisfação que pode relacionar-se com a forma como, através de uma actuação concreta, a ideia de felicidade pode ser pressentida.
Nesta perspectiva, à ideia de que nenhum homem se pode considerar feliz antes de morrer opor-se-á uma outra segundo a qual o conceito de eudaimonia se estenderá, então, ao de ser-se rico, ou poderoso, ou mesmo ter-se bons filhos, por exemplo.
[1] ARISTÓTELES, Nicomachean ethics, Hackett Publishing Company, Indianapolis/Cambridge, 1984.
[2] SNELL, Bruno, The Discovery of the mind in greek philosophy and literature, Dover Publications, Inc, New York, 1986, pp.163-164.
[3] PLATÃO, Fédon, Livraria Minerva, Coimbra, 1988, 79c.
[4] idem, 64a.
[5] PLATÃO, Apologia de Sócrates, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 4ª edição, Col. «Clássicos de Filosofia», tradução de José Trindade Santos.
[6] PLATÃO, Fedon, 85b.
[7] Eclesiastes, 1, 17.
[8] idem, 2, 24.
[9] ARISTÓTELES, ob. cit., 1097b 20.
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