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domingo, 9 de junho de 2013

O rasto do rasto

«Muitas vezes se disse que a experiência religiosa é a experiência de um êxodo; mas se se trata de êxodo, é provavelmente por ocasião de uma viagem de regresso. Não é sem dúvida graças a uma qualquer natureza essencial, mas o certo é que nas nossas condições de existência (Ocidente cristão, modernidade secularizada, estados de alma de fim de século preocupados com a ameaça de riscos apocalípticos inéditos), a religião é vivida como um regresso. É o retornar-se presente de qualquer coisa que pensávamos ter definitivamente esquecido, a reactivação de um rasto adormecido, o reabrir de uma ferida, o reaparecimento de um recalcado, a revelação de que aquilo que pensávamos ter sido Uberwindung (no sentido da superação, do devir verdadeiro e do pôr de lado decorrente) não é mais do que uma Verwindung, uma longa convalescença que de novo tem que acertar contas com o rasto indelével da sua doença. Se se trata de um regresso, este reaparecimento da religião não será acidental por relação com a sua própria essência? Não é como se - por uma razão histórica, individual ou social qualquer - nos tivesse acontecido simplesmente esquecê-la, afastarmo-nos dela (talvez com um certo sentimento de culpa), e como se, por uma razão igualmente fortuita, o esquecimento se tornasse agora de súbito mais raro? Mas semelhante mecanismo (haveria, neste caso, uma verdade essencial da religião que existiria algures, imóvel, enquanto os indivíduos e as gerações se limitariam a ir e vir em torno dela num movimento perfeitamente exterior e insignificante) já se tornou para nós impraticável em filosofia: se dizemos que uma tese é verdadeira, deveremos taxar de estupidez ou de absurdo todos os grandes ou menos grandes pensadores do passado que não a reconheceram como tal? O que significaria de outro modo que é de uma história da verdade que se trata (uma história do ser) não demasiado essencial quanto ao seu "conteúdo"... À luz destas considerações, parece desde já preferível a hipótese segundo a qual o reaparecimento, o regresso da religião na nossa experiência não é um dado puramente acidental que deveria ser posto de lado para nos concentrarmos simplesmente nos conteúdos que assim eis de regresso. Podemos, em contrapartida, suspeitar legitimamente de que o regresso é um aspecto (ou o aspecto) essencial da experiência religiosa.»

Gianni Vattimo, «O Rasto do Rasto», in A Religião

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