Não é minha a intenção de engendrar uma teoria do sonho. Contudo, julgo que poderei propor alguns tópicos de discussão acerca de uma eventual teoria do sonho.
O poema final de Through the Looking-Glass and what Alice found there parece sugerir a ideia de que as únicas crianças boas, são as crianças mortas, quietas, que “não dão trabalho”. Se nos apropriarmos de alguns conceitos de Freud, podemos pensar que o sonho de Alice pode constituir uma espécie de descontracção da censura, momento durante o qual, servindo-se da trégua motivada pelo sono, a personagem transporia a barreira da repressão. Quando a acção decorre ao sabor do sonho, torna-se indiscernível a distinção entre sonho e realidade, visto que, no sonho, tudo adquire uma dimensão de verdade. É nesta perspectiva que Alice, ao longo das duas obras, cresce, também do ponto de vista da relevância do seu papel, nomeadamente quando ascende à condição de “rainha”.
No final da obra, o “fazer de conta” por parte de Kitty recupera a circunstância que ocorre no primeiro capítulo de Through the Looking-Glass, quando Alice afirma ter discutido com a irmã por esta não ter aceite a sua proposta para “fazerem de conta que eram reis e rainhas”. De certo modo, quando, mais adiante, Alice, dirigindo-se a Kitty, afirma “Let’s pretend that you’re the Red Queen”, ela parece estar a assumir a sua gata como uma solução de recurso. O que decorre desta passagem da gata a Rainha de Copas é o castigo a que Alice a condena, colocando-a na “Looking-Glass House”. Ora, no final do último capítulo de Through the Looking-Glass, a reacção da gata parece corresponder a uma espécie de resposta ao castigo do primeiro capítulo. Sendo assim, na perspectiva de que é Alice quem sonha e que, por via do sonho, é capaz de comandar as acções, o facto de Kitty fingir introduz uma variável que me parece digna de atenção.
Apesar de ser comum podermos atribuir interpretações a determinadas acções e gestos de animais, não poderemos afirmar com toda a certeza que aquilo que intuímos acerca desses gestos corresponda ao que se passa, de facto, com o animal em concreto que observámos. Contudo, uma situação deste género é susceptível de ser entendida como verdadeira ao nível do sonho. Neste caso, se entendermos que, no capítulo final de Through the Looking-Glass, Alice acordou, saindo, desse modo, do “outro lado do espelho”, os gestos da gata, nestas novas circunstâncias não deveriam de continuar a ser interpretados dentro do mesmo universo de referências, que, presumivelmente moldariam as reacções de Alice. De certo modo, Alice, mesmo acordando, parece ter dificuldade em estabelecer os limites entre aquilo que é próprio do sonho e aquilo que o não é e, por isso, o seu registo perante Kitty, não parece modificar-se.
A interrogação final colocada no final do capítulo XII de Through the Looking-Glass remete, no fundo, para a eventualidade de em certas circunstâncias se tornarem problemáticas as distinções entre “estar ou não estar” a sonhar e “estar ou não estar acordado”.
Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone. Anche in una società più decente di questa, mi sa che mi troverò a mio agio e d'accordo sempre con una minoranza. (Nanni Moreti)
Acerca de mim
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
O princípio da individuação está presente, enquanto problema, no diálogo entre a pomba e Alice no capítulo V de Alice’s adventures in wonderland e resulta do facto de, ao afirmar ser indiferente que Alice seja uma “little girl” ou “a serpent”, a pomba, no fundo, provocar uma reacção particular de Alice. Como podemos observar a partir da leitura da obra, Alice vai sendo várias coisas sem que esboce uma reacção como aquela que nesta passagem revela. A questão que se coloca, entre outras, é a de que Alice parece pretender ser reconhecida pela pomba como aquilo que ela é, ou por aquilo que ela considera ser. Contudo, não estou certo que ela saiba “o que é”. É esse o seu problema. Passando por várias transformações e diferentes modos de ser nomeada, Alice parece não ser capaz de responder para si própria à pergunta: o que és tu, Alice? Perante esta circunstância, a afirmação da pomba proporciona a Alice a necessidade de ser capaz de se distinguir dos outros e de se reconhecer em si própria. Esta é uma necessidade primordial e um objectivo a cumprir.
De certo modo, a Alice falta um sentido de totalidade que a possa fazer repousar numa identidade pessoal básica, ao nível, por exemplo, da utilidade que essa identidade pode ter para a sua vida prática. Por outras palavras, não sendo capaz de se identificar, nem com aquilo que lhe é dito pela pomba, nem com a construção mental que tem de si mesma, Alice reage, afirmando uma especificidade que não lhe é dada por um nome, mas por uma categoria particular que, eventualmente, poderá ser formulada em termos não muito distantes de: Alice é igual a alguém que não procura ovos, muito menos os da pomba.
Esta definição de Alice, no entanto, peca por ser redutora.
Ao longo da obra encontramos respostas incompatíveis entre si à pergunta “o que é a Alice?”, respostas que escapam àquilo que mais facilmente poderia ser dito: que simplesmente, Alice é algo que depende das circunstâncias. Neste sentido, Alice é mostrada em constante evolução. Uma evolução que a faz ser constantemente outra coisa. Deste modo, da resposta “depende” parece emergir a ideia de que Alice vai sendo isto ou aquilo e que, por esse motivo, a sua definição depende das circunstâncias e das criaturas com que se vai cruzando.
A partir daquilo que acontece a Alice, lembrei-me de uma passagem do Breviário de estética, em que Benedetto Croce afirma que “a vida ulterior do espírito, renovando e multiplicando os problemas, torna, já não falsas, mas inadequadas as soluções precedentes, parte das quais cai no número daquelas verdades que se subentendem, e outra parte deve ser retomada e integrada.” A impressão que sou tentado a registar é a de que, muito mais do que um problema para a Alice, o facto de existir uma dificuldade na sua descrição é um problema para quem pretenda encontrar um sentido para a obra, na medida em que, devido à necessidade de categorizarmos uma coisa, de a arrumarmos, corrermos o risco de não a chegar a intuir da forma mais adequada, que consiste em perceber a sua evolução e o modo como esta evolução, partindo de uma ocorrência, poderá ou não relacionar-se com o que a precedeu e com aquilo que se sucederá.
De certo modo, a Alice falta um sentido de totalidade que a possa fazer repousar numa identidade pessoal básica, ao nível, por exemplo, da utilidade que essa identidade pode ter para a sua vida prática. Por outras palavras, não sendo capaz de se identificar, nem com aquilo que lhe é dito pela pomba, nem com a construção mental que tem de si mesma, Alice reage, afirmando uma especificidade que não lhe é dada por um nome, mas por uma categoria particular que, eventualmente, poderá ser formulada em termos não muito distantes de: Alice é igual a alguém que não procura ovos, muito menos os da pomba.
Esta definição de Alice, no entanto, peca por ser redutora.
Ao longo da obra encontramos respostas incompatíveis entre si à pergunta “o que é a Alice?”, respostas que escapam àquilo que mais facilmente poderia ser dito: que simplesmente, Alice é algo que depende das circunstâncias. Neste sentido, Alice é mostrada em constante evolução. Uma evolução que a faz ser constantemente outra coisa. Deste modo, da resposta “depende” parece emergir a ideia de que Alice vai sendo isto ou aquilo e que, por esse motivo, a sua definição depende das circunstâncias e das criaturas com que se vai cruzando.
A partir daquilo que acontece a Alice, lembrei-me de uma passagem do Breviário de estética, em que Benedetto Croce afirma que “a vida ulterior do espírito, renovando e multiplicando os problemas, torna, já não falsas, mas inadequadas as soluções precedentes, parte das quais cai no número daquelas verdades que se subentendem, e outra parte deve ser retomada e integrada.” A impressão que sou tentado a registar é a de que, muito mais do que um problema para a Alice, o facto de existir uma dificuldade na sua descrição é um problema para quem pretenda encontrar um sentido para a obra, na medida em que, devido à necessidade de categorizarmos uma coisa, de a arrumarmos, corrermos o risco de não a chegar a intuir da forma mais adequada, que consiste em perceber a sua evolução e o modo como esta evolução, partindo de uma ocorrência, poderá ou não relacionar-se com o que a precedeu e com aquilo que se sucederá.
Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte.
Platão, República, 338c
Esta afirmação de Trasímaco parece ecoar no modo como a justiça é exercida no capítulo 3 de Alice’s adventures in wonderland, no momento em que Dodó sugere que todos participem numa “Caucus-Race”. A sugestão de Dodó resulta do insucesso da proposta do Rato, que pressupunha que todos ficariam secos se ouvissem histórias enfadonhas. No texto, a identificação da autoridade, primeiro do Rato e depois do Dodó, resulta à primeira vista pouco explicada: o Rato porque “seemed to be a person of some authority among them”; o Dodó, porque fala num tom solene e se põe de pé. À partida, estas parecem ser razões pouco credíveis para que a alguém seja atribuído um estatuto de autoridade. Contudo, no contexto em que a acção decorre, estas razões são susceptíveis de ser entendidas como boas. Num certo sentido, o nível destas explicações não difere muito daquele em que o Gato define que é maluco, através da caracterização que apresenta do cão, ao afirmar que o cão não é maluco porque rosna quando está zangado e que dá ao rabo quando está feliz, enquanto ele, Gato, rosna quando está feliz e dá ao rabo quando está zangado. Esta definição de maluco, se lida à luz de uma ideia que pressupõe que a um maluco é permitido dizer tudo sem que se lhe exija um nexo, parece ser susceptível de ser associada àquilo que acontece no episódio da “Caucus-Race”, acima mencionado.
Esta situação aproxima-se também daquilo que acontece no capítulo VIII, durante o jogo de croquete, e adquire visibilidade maior no momento em que, lamuriando-se, Alice diz ao Gato que “não lhe parece que eles joguem como deve ser”. Alice tem a noção de que num jogo, como numa discussão, deve existir uma ordem, que devem existir regras claras, ao mesmo tempo que constata que não é isso que acontece no jogo em que ela participa naquele momento.
Alice sabe que a ordem natural de uma discussão pressupõe à partida a ideia de que existem regras e que o exercício dessas regras é executado pela justiça. Neste sentido, a justiça consiste numa prática de actuação que envolve várias partes, todas elas sujeitas a regras de debate, de organização. Ora, a partir do momento em que as regras são pouco claras, ou mesmo arbitrárias e sujeitas aos desejos de alguém que exerce a autoridade, deixa de haver um critério nítido de justiça, se enquadrado ao nível da experiência pessoal de Alice. É esta situação de arbitrariedade que a desconforta e que lhe frustra as expectativas, visto que os critérios de atribuição de sentido e de ordem se encontram postos em causa, partindo da experiência anterior da protagonista.
A “conveniência do mais forte” a que Trasímaco faz referência pode ser um meio de exercer um poder ilegítimo, assente na arbitrariedade das decisões, de acordo com os interesses daquele que exerce a autoridade.
Platão, República, 338c
Esta afirmação de Trasímaco parece ecoar no modo como a justiça é exercida no capítulo 3 de Alice’s adventures in wonderland, no momento em que Dodó sugere que todos participem numa “Caucus-Race”. A sugestão de Dodó resulta do insucesso da proposta do Rato, que pressupunha que todos ficariam secos se ouvissem histórias enfadonhas. No texto, a identificação da autoridade, primeiro do Rato e depois do Dodó, resulta à primeira vista pouco explicada: o Rato porque “seemed to be a person of some authority among them”; o Dodó, porque fala num tom solene e se põe de pé. À partida, estas parecem ser razões pouco credíveis para que a alguém seja atribuído um estatuto de autoridade. Contudo, no contexto em que a acção decorre, estas razões são susceptíveis de ser entendidas como boas. Num certo sentido, o nível destas explicações não difere muito daquele em que o Gato define que é maluco, através da caracterização que apresenta do cão, ao afirmar que o cão não é maluco porque rosna quando está zangado e que dá ao rabo quando está feliz, enquanto ele, Gato, rosna quando está feliz e dá ao rabo quando está zangado. Esta definição de maluco, se lida à luz de uma ideia que pressupõe que a um maluco é permitido dizer tudo sem que se lhe exija um nexo, parece ser susceptível de ser associada àquilo que acontece no episódio da “Caucus-Race”, acima mencionado.
Esta situação aproxima-se também daquilo que acontece no capítulo VIII, durante o jogo de croquete, e adquire visibilidade maior no momento em que, lamuriando-se, Alice diz ao Gato que “não lhe parece que eles joguem como deve ser”. Alice tem a noção de que num jogo, como numa discussão, deve existir uma ordem, que devem existir regras claras, ao mesmo tempo que constata que não é isso que acontece no jogo em que ela participa naquele momento.
Alice sabe que a ordem natural de uma discussão pressupõe à partida a ideia de que existem regras e que o exercício dessas regras é executado pela justiça. Neste sentido, a justiça consiste numa prática de actuação que envolve várias partes, todas elas sujeitas a regras de debate, de organização. Ora, a partir do momento em que as regras são pouco claras, ou mesmo arbitrárias e sujeitas aos desejos de alguém que exerce a autoridade, deixa de haver um critério nítido de justiça, se enquadrado ao nível da experiência pessoal de Alice. É esta situação de arbitrariedade que a desconforta e que lhe frustra as expectativas, visto que os critérios de atribuição de sentido e de ordem se encontram postos em causa, partindo da experiência anterior da protagonista.
A “conveniência do mais forte” a que Trasímaco faz referência pode ser um meio de exercer um poder ilegítimo, assente na arbitrariedade das decisões, de acordo com os interesses daquele que exerce a autoridade.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
Suspeito que Camilo Castelo-Branco não tivesse um projecto prévio em relação às Memórias do Cárcere. Pelo menos no sentido de pretender determinar certos padrões de comportamento, com o seu texto. Camilo conhecia demasiado intimamente os diferentes e imprevisíveis matizes do comportamento das pessoas, para ter a veleidade de pretender antecipar ou influenciar comportamentos. Por isso, o seu texto contém descrições intrincadas, finas, das pessoas que nomeia. Sabendo da impossibilidade de determinar um modo de agir particular nos outros, porque ele próprio era dado às flutuações do momento que a vida lhe oferecia, restava-lhe descrever, como se fosse "em carne viva", processos e situações que aconteciam nas vidas dos outros e também na sua. De vidas entregues à circunstância e ao acaso derivado da sua condição. O livre-arbítrio a que o homem tem de dar resposta em todos os movimentos do seu espírito é assumido como uma vantagem, mas também como um modo de dar resposta à liberdade de proceder a escolhas e de reconhecer as dificuldades que a elas muitas vezes são inerentes. É a liberdade do espírito, do seu próprio e dos outros que é mostrada ao longo de Memórias do Cárcere.
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