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domingo, 25 de março de 2012

Categoria de espírito

«Nuno Meneses de Sequeira recebeu-me  num salão barroco com muitos estuques no tecto e duas grandes tapeçarias poídas nas paredes. Estava vestido de preto, tinha a cara a luzir, o crânio calvo cintilava, estava sentado numa poltrona de veludo beige, quando entrei levantou-se, fez uma imperceptível vénia com a cabeça e convidou-me a sentar num pequeno sofá sob a janela. As portadas estavam fechadas e na sala pairava um cheiro pesado de tapeçaria velha. Como morreu?, perguntei, tinha uma doença grave, disse, não sabia? Abanei a cabeça. Que género de doença? Nuno Meneses de Sequeira cruzou as mãos. Uma doença grave, disse. Telefonou-me para Madrid há quinze dias, não me disse nada, nem mesmo uma alusão, ainda não sabia? Estava já muito mal e a par de tudo. Porque é que não me terá dito? Talvez não achasse oportuno, disse Nuno Meneses de Sequeira, agradecia se não viesse ao funeral, será estritamente privado. Não tinha essa intenção, tranquilizei-o. Fico-lhe muito grato, murmurou em voz baixa.
O silêncio na sala tornou-se palpável, incómodo. Posso vê-la?, perguntei, Nuno Meneses de Sequeira olhou-me longamente, com ar irónico, pareceu-me. Não é possível, disse, está na clínica da CUF, morreu lá, e o médico deu ordem para fechá-la, não era possível deixá-la aberta, dadas as condições.
Pensei despedir-me, pensei por que motivo me teria telefonado, mesmo que fosse uma vontade de Maria do Carmo, para quê fazer-me vir a Lisboa, qualquer coisa me escapava, ou talvez não houvesse nada de estranho, aquela situação era simplesmente penosa, era inútil prolongá-la. Mas Nuno Meneses de Sequeira não acabara de falar, apoiava as mãos nos braços da poltrona como quem está para levantar-se de um momento para o outro, tinha os olhos aquosos e uma expressão dura, má, ou talvez fosse a tensão nervosa que devia sentir. O senhor nunca a entendeu, disse, é demasiado jovem, era jovem demais para Maria do Carmo. E o senhor velho demais, tive vontade de dizer, mas calei-me. Ocupa-se de filologia, ah ah, deu uma risadinha, a sua vida são as bibliotecas, não podia entender uma mulher assim. O que quer dizer com isso?, disse eu, Nuno Meneses de Sequeira levantou-se, foi à janela, abriu ligeiramente as portadas. Quero tirar-lhe uma ilusão, disse, a de ter conhecido Maria do Carmo, o senhor só conheceu uma ficção de Maria do Carmo. O que quer dizer com isso?, repeti. Bem, sorriu Nuno Meneses de Sequeira, imagino o que lhe terá contado Maria do Carmo, uma história de folhetim com uma infância infeliz em Nova Iorque, um pai republicano morto heroicamente na guerra civil de Espanha, oiça meu caro senhor, nunca na vida estive em Nova Iorque, Maria do Carmo é filha de grandes proprietários, teve uma infância dourada, há quinze anos, quando a conheci, tinha vinte e sete anos e era a mulher mais cortejada de Lisboa, eu voltava de uma missão diplomática em Espanha e ambos tínhamos em comum o amor pelo nosso país. Fez uma pausa como para dar maior peso às suas palavras. O amor pelo nosso país, repetiu, não sei se me faço entender. Depende em que sentido usa a palavra, disse eu. Nuno Meneses de Sequeira ajustou o nó da gravata, tirou da algibeira um lenço, assumiu um ar enfadado e ao mesmo tempo paciente. Oiça, Maria do Carmo gostava muito de um jogo. Jogou-o toda a vida, sempre o jogámos de comum acordo. Fiz um gesto com a mão, como para impedi-lo de continuar, mas ele prosseguiu: o senhor deve ter caído no tal jogo do reverso. Um relógio de pêndulo, numa sala distante, tocou. A menos que não tenha sido o senhor a cair num reverso do mesmo jogo, disse eu. Nuno Meneses de Sequeira sorriu mais uma vez, bonito sim senhor, disse, podia ser uma frase de Maria do Carmo, é legítimo que o senhor pense nessa hipótese, mesmo que seja uma presunção, acredite. Havia uma nota de desprezo na sua voz. Fiquei em silêncio, olhando para o chão, havia um tapete de Arraiolos de um azul profundo com pavões cinzentos. Lamento que o senhor me obrigue a ser mais explícito, recomeçou Nuno Meneses de Sequeira, suponho que gosta de Pessoa. Gosto muito, admiti. Talvez até esteja ao corrente das traduções que saem no estrangeiro. O que é que quer dizer?, perguntei. Nada de especial, disse ele, só isto, que Maria do Carmo recebia muitas traduções do estrangeiro, entende-me, não é verdade? Não o entendo, disse eu. Digamos que não quer entender-me, corrigiu-me Nuno Meneses de Sequeira, que prefere não me entender, a realidade é desagradável, e o senhor prefere os sonhos, peço que não me obrigue a descer aos detalhes, os detalhes são sempre tão ordinários, limitemo-nos ao conceito.
Da janela chegou o som de uma sirene, talvez um navio que entrava no porto, e imediatamente senti um imenso desejo de ser um dos passageiros daquele navio, de entrar no porto de uma cidade desconhecida que se chamava Lisboa e de ter que telefonar a uma mulher desconhecida para lhe dizer que saíra uma nova tradução de Fernando Pessoa, e essa mulher chamar-se-ia Maria do Carmo, viria à livraria Bertrand com um vestido amarelo, gostaria do fado e dos pratos safarditas, e eu já sabia tudo isto, mas aquele passageiro que era eu e que olhava Lisboa do parapeito do navio não o sabia ainda e tudo seria para ele novo e idêntico. E isso era saudade, Maria do Carmo tinha razão, não era uma palavra, era uma categoria de espírito. A seu modo, também ele era um reverso.»

Antonio Tabucchi, O Jogo do reverso

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