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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

domingo, 22 de julho de 2012

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Camilo

«Da figura gigântea de Camilo que evoco maior, picado de bexigas, sorriso desdenhoso e olhar fino através das lunetas, restam apenas alguns ossos que vão ser transportados para o Panteão dos Jerónimos; mas a sua Obra de colosso, essa lê-se ainda toda, com lágrimas ou com risos.
É certo. Tudo o que depois se fez na literatura é gelado ao pé dos seus romances. O mesmo Eça nunca se enfurece, não berra, não sua. Sorri, céptico, com a careta em bico - caveira de monóculo a espreitar para tudo. É além disso um seco: toda a sua emoção, tudo o que nele restava de amor à humanidade o deixou pelos seus dois primeiros livros. Nos Maias há um capítulo dramático a valer, que logo se sente arrancado a ferros, feito com o desespero de quem se vê sem lágrimas já para chorar. As cartas de Fradique Mendes vêm demonstrar que a sua ironia se aguça, se afinam os seus nervos, à medida que se lhe seca a emoção, como um galho de árvores mirrado pelo estio.
Ao contrário Camilo é sempre moço. Se despreza os seus personagens, enfurece-se, bate-lhes, fá-los ridículos a valer; se os ama dá-lhes todo o seu coração e sua alma. Chora com eles, sofre com eles. Tem páginas e páginas sem valor, mas tem-nas também magníficas. Os mais pequenos recantos de Eça são finos, dão emoção, toques de luz, o encanto. Todas as páginas dos seus livros são boas. Camilo pelo seu tipo de romântico, com a vida batida a galopadas, de raptos, de amores, de rija pancadaria, é muito mais simpático que essa cegonha de monóculo, a espreitar a existência, numa perna só, para se rir. Um era actor, o outro é espectador; um é todo feito de cérebro e de nervos, o outro era todo coração; um se lhe batiam enfurecia-se, vinha para a rua com a sua viva clava e dava as última bordoadas, o outro não se enfurece nunca: tem sorrisos altivos de desprezo, ironia, um bater de bico, que se parece com risos de escárnio. Camilo gargalhava e chorava, Eça sorri e faz caretas. A filosofia do primeiro era de ocasião, moldada pelo seu sentimento e pelos seus nervos; a filosofia do segundo é uma destas coisas que irrita, monstruosa, que não sabe apaixonar-se, nem viver, que vai para todas as coisas pensando no fim e que nunca se abandona, sorrindo até de si próprio. O Camilo morreu despedaçando o crânio com um tiro de pistola, depois de uma vida de torturas: o Eça se tivesse de se suicidar - envenenar-se-ia. Um é cosmopolita: tem visto tudo, está cansado de ver, tem no estilo e nas tintas todas as cores, lama e oiro, o outro assistira a muitos dramas, a vidas despedaçadas, andara no vagalhão, com lobos e com amigos a valer, batera-se, passara por todas as coisas, vira muitas almas - e nunca saíra da Pátria. O Eça foi sempre de Paris - o Camilo da Samardã. Derrocada de montanha - árvore exótica que se cobre de flor.»

Raúl Brandão, Sonhos

quinta-feira, 19 de julho de 2012

L.O.V.E. - Nat "King" Cole (1964)

X

«À medida que aumenta o poderio de uma sociedade, assim esta dá menos importância às faltas dos seus membros, porque já não lhes parecem perigosas nem subversivas; o malfeitor já não está reduzido ao estado de guerra; mais ainda: defendem-no contra esta cólera. O aplacar a cólera dos prejudicados, o localizar o caso para evitar distúrbios, e procurar equivalências para harmonizar tudo (compositio) e principalmente o considerar toda a infracção como expiável e isolar portanto o delinquente do seu delito, tais são os rasgos que caracterizam o ulterior desenvolvimento do direito penal. À medida, pois, que aumenta numa sociedade o poder e a consciência individual, vai-se suavizando o direito penal, e, pelo contrário, enquanto se manifesta uma fraqueza ou um grande perigo, reaparecem a seguir os mais rigorosos castigos. Isto é, o credor humanizou-se conforme se foi enriquecendo; como que no fim, a sua riqueza mede-se pelo número de prejuízos que pode suportar. E até se concebe uma sociedade com tal consciência do seu poderio, que se permite o luxo de deixar impunes os que a ofendem. »Que me importam a mim esses parasitas? Que vivam e que prosperem; eu sou forte bastante para me inquietar por causa deles...» A justiça, pois, que começou a dizer: «tudo pode ser pago e deve ser pago» é a mesma que, por fim, fecha os olhos e não cobra as suas dívidas e se destrói a si mesma como todas as coisas boas deste mundo. Esta autodestruição da justiça, chama-se graça e é privilégio dos mais poderosos, dos que estão para além da justiça.»

Nietzsche, A Genealogia da Moral

domingo, 15 de julho de 2012

Pat Matheny - A Map Of The World

Kitsch

«Numa sociedade do kitsch, a política já não é um espaço público para um debate sério sobre um modelo de sociedade e o modo de a atingir. A política tornou-se uma espécie de circo no qual os políticos se esforçam por conquistar e manter o poder através de slogans e de uma imagem pública. Nesta sociedade, a economia é dominada pelo espírito da procura do lucro a qualquer preço (em detrimento das pessoas, do ambiente, da qualidade) e que exige que quem caia sob a sua alçada se adapte, seja competitivo, produtivo, eficiente, comercial e, acima de tudo, que não seja quem é. A educação já não visa formar o carácter para ajudar as pessoas a viverem na verdade e a criarem beleza, para permitir a aplicação da justiça e a transmissão de uma certa sabedoria. Degenerou num instrumento de transmissão de tudo o que é utilitário, de conhecimentos úteis à economia e de tudo o que necessitamos de saber para ganhar dinheiro.»

Rob Riemen, O Eterno Retorno do Fascismo