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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Camilo

«Da figura gigântea de Camilo que evoco maior, picado de bexigas, sorriso desdenhoso e olhar fino através das lunetas, restam apenas alguns ossos que vão ser transportados para o Panteão dos Jerónimos; mas a sua Obra de colosso, essa lê-se ainda toda, com lágrimas ou com risos.
É certo. Tudo o que depois se fez na literatura é gelado ao pé dos seus romances. O mesmo Eça nunca se enfurece, não berra, não sua. Sorri, céptico, com a careta em bico - caveira de monóculo a espreitar para tudo. É além disso um seco: toda a sua emoção, tudo o que nele restava de amor à humanidade o deixou pelos seus dois primeiros livros. Nos Maias há um capítulo dramático a valer, que logo se sente arrancado a ferros, feito com o desespero de quem se vê sem lágrimas já para chorar. As cartas de Fradique Mendes vêm demonstrar que a sua ironia se aguça, se afinam os seus nervos, à medida que se lhe seca a emoção, como um galho de árvores mirrado pelo estio.
Ao contrário Camilo é sempre moço. Se despreza os seus personagens, enfurece-se, bate-lhes, fá-los ridículos a valer; se os ama dá-lhes todo o seu coração e sua alma. Chora com eles, sofre com eles. Tem páginas e páginas sem valor, mas tem-nas também magníficas. Os mais pequenos recantos de Eça são finos, dão emoção, toques de luz, o encanto. Todas as páginas dos seus livros são boas. Camilo pelo seu tipo de romântico, com a vida batida a galopadas, de raptos, de amores, de rija pancadaria, é muito mais simpático que essa cegonha de monóculo, a espreitar a existência, numa perna só, para se rir. Um era actor, o outro é espectador; um é todo feito de cérebro e de nervos, o outro era todo coração; um se lhe batiam enfurecia-se, vinha para a rua com a sua viva clava e dava as última bordoadas, o outro não se enfurece nunca: tem sorrisos altivos de desprezo, ironia, um bater de bico, que se parece com risos de escárnio. Camilo gargalhava e chorava, Eça sorri e faz caretas. A filosofia do primeiro era de ocasião, moldada pelo seu sentimento e pelos seus nervos; a filosofia do segundo é uma destas coisas que irrita, monstruosa, que não sabe apaixonar-se, nem viver, que vai para todas as coisas pensando no fim e que nunca se abandona, sorrindo até de si próprio. O Camilo morreu despedaçando o crânio com um tiro de pistola, depois de uma vida de torturas: o Eça se tivesse de se suicidar - envenenar-se-ia. Um é cosmopolita: tem visto tudo, está cansado de ver, tem no estilo e nas tintas todas as cores, lama e oiro, o outro assistira a muitos dramas, a vidas despedaçadas, andara no vagalhão, com lobos e com amigos a valer, batera-se, passara por todas as coisas, vira muitas almas - e nunca saíra da Pátria. O Eça foi sempre de Paris - o Camilo da Samardã. Derrocada de montanha - árvore exótica que se cobre de flor.»

Raúl Brandão, Sonhos

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