O
seu olhar já não fixava, vagueava. Um resquício do que ele antes fora, a
espaços, emergia no modo como, juntamente com um sorriso atrevido, procurava
mostrar presença, dizer que ainda ali estava, para durar, como, por vezes,
teimava mecanicamente em avisar. O seu atrevimento, contudo, não era genuíno
mas o resultado de uma atitude que, durante toda a vida, procurara esconder mas
que, agora, privado de muitas das suas capacidades, evidenciava numa espécie de
vitória perante o seu estado. Pura ilusão.
A
barba por ajeitar e o cabelo por cortar conferiam-lhe um ar de abandono, que
ela, a esposa, apesar dos seus próprios males, teimava em contrariar.
O
amor é um lugar difícil de compreender. Imaginamos o amor como a qualidade mais
nobre, aquela que é capaz de elevar o ser humano a uma dimensão divina. No
entanto, pelo amor, somos capazes de iludir aquilo que somos e de, assim, nos
evadirmos de nós próprios e dos nossos males. Afinal, o amor é uma fraqueza,
porque nos disponibiliza para o sofrimento transferido e corrompe aquilo que de
mais genuíno trazemos em nós.
Ouvi
falar do amor desde que nasci, mas o amor verdadeiro, aquele a que consigo
associa a imagem da justiça, nunca encontrei. Era de amor que falavam aqueles
de quem o amor se esquecia e que, numa espécie de sublimação messiânica,
procuravam explicar o vazio de um amor a que não eram capazes de ascender em
vida.
O
amor, assim entendido, assemelhava-se a uma espécie de crença e, a partir do
momento em que a crença se instalava, perante a irresolubilidade da vida,
alimentavam-se de uma imaginação que lhes sugeria a felicidade em imagens de
pessoas infelizes.
Durante
muito tempo senti um incómodo perante o amor assim entendido. Com o tempo e com
os cabelos brancos, compreendi que, ao tentar pôr em evidência este estado de
coisas, estaria a retirar a luz da esperança às pessoas que me eram mais
queridas.
Foi
então que desisti.
A
partir de um certo momento na minha vida passei a servir-me das conversas dos
outros para perceber, antes de dizer alguma coisa, aquilo que poderia
acrescentar sem desafinar.
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