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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Momentos Inaugurais

«A meio da noite acordei e ouvi a Gertrudes a cantar uma cantiga popular. A lamparina do quarto estava acesa. Um presépio com pastores adorando o Deus menino brilhava vagamente sobre a cómoda alta que tínhamos no quarto. Numa mesa branca, de abas, entre os presentes do meu irmão, estava o cinematógrafo com a sua chaminé curvada, a sua lente de formas suaves no tubo de latão, o suporte para os carretes de filme.
A decisão que tomei foi rápida. Acordei o meu irmão e propus-lhe um negócio: dava-lhe os meus cem soldadinhos de chumbo em troca do cinematógrafo. Como ele já tinha um exército enorme e estava sempre metido em guerras com os amigos, a proposta foi aceite para contento de ambos.
Aquele cinematógrafo era meu!
Não se tratava de um aparelho complicado. A fonte luminosa era uma lâmpada de querosene e a manivela estava ligada a uma roda dentada. No lado posterior da caixa de metal havia um espelho simples, reflector, e atrás da lente havia um suporte para pôr negativos a cores. Com o aparelho vinha ainda uma caixa quadrada, de cor violeta. Continha não só imagens em vidros, como também uma fita cor de sépia, de 35 mm. Esta fita tinha uns três metros e tinha as extremidades coladas uma à outra formando uma cinta sem fim. Na tampa da caixa vinha o título da película: Frau Holle. Ninguém me pôde dizer quem era esta senhora Hole, mas mais tarde vim a saber que se tratava de uma figura a crença popular, equivalente à deusa do amor dos países mediterrâneos.
Na manhã seguinte meti-me no guarda-fato enorme do nosso quarto, coloquei o cinematógrafo em cima de um caixote, acendi a lâmpada e dirigi o foco luminoso para a parede branca. Depois pus o filme e apareceu logo a imagem de um prado. Nesse prado estava uma rapariga nova, meio adormecida, que vestia, segundo me pareceu, um traje regional. Quando dava à manivela (não, isto não é possível explicar-vos, não encontro palavras para descrever a minha excitação, só vos posso dizer que, sempre que quero, consigo recordar o cheiro que exalava o metal aquecido da caixa, o cheiro do produto contra as traças que havia no guarda-fato, o pó, a pressão da minha mão na manivela, o rectângulo projectado, a tremer).
Dava à manivela, dizia, e a rapariga acordava, sentava-se, levantava-se devagar, estendia os braços, dava uma volta e desaparecia pela direita. Continuando a dar à manivela ela voltava a aparecer deitada no prado e repetia exactamente os mesmos movimentos. Movia-se!»

Ingmar Bergman, Lanterna Mágica

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