No Porto
Por um barco de Tenos, jovem, há vinte e oito anos nascido,
Émès a este porto sírio foi trazido
com o intuito de aprender a ser de essências vendedor.
Porém adoeceu na viagem de mar. E logo ao pôr
os pés em terra, morreu. O enterro pobre até mais não poder ser
teve lugar aqui. Algo, poucas horas antes de morrer,
«casa», «pais muito velhos», num murmúrio dizia.
Mas quem eram estes ninguém sabia,
nem qual no grande mundo heleno a terra dele terá sido.
Melhor. Pois enquanto assim
jaz neste porto falecido, hão-de esperá-lo vivo seus pais até ao fim.
Émès a este porto sírio foi trazido
com o intuito de aprender a ser de essências vendedor.
Porém adoeceu na viagem de mar. E logo ao pôr
os pés em terra, morreu. O enterro pobre até mais não poder ser
teve lugar aqui. Algo, poucas horas antes de morrer,
«casa», «pais muito velhos», num murmúrio dizia.
Mas quem eram estes ninguém sabia,
nem qual no grande mundo heleno a terra dele terá sido.
Melhor. Pois enquanto assim
jaz neste porto falecido, hão-de esperá-lo vivo seus pais até ao fim.
Konstandinos Kavafis, Os Poemas
A minha atenção dispersa-se nas palavras de um poeta grego. Um poeta. Descreve o poeta pequenas histórias de amores furtivos e como, apesar de furtivos, esses amores permanecem. O poeta mostra-nos ocorrências sem nos sugerir interpretações, senão aquelas que, por nossa conta e por risco das nossas experiências, possamos atribuir às palavras que, secas, cortam a paisagem e lhe conferem contornos imprevisíveis, tal como a vida se vai esboçando nos rascunhos do tempo.
O poeta mostra os espaços de uma memória prospectiva. Um cheiro, uma impressão táctil, uma visão. Eis a actualização da memória tornada presente. O poeta não se lamenta e a sua tristeza reside nas sombras profundas.
O dia trouxe consigo o espaço metonímico da memória que se estende em associações, sucessivas e irrecusáveis. Por muito que possam ser dolorosas, as suas marcas instalam-se em silêncio. Um silêncio duro, cru, que remete para esse espaço onde tudo perdura. O porto é um lugar, por excelência, da memória, um lugar de passagem e de gente que não permanece lá. Nada de facto permanece ou, pelo menos, assim parece ser. Maravilhoso e assustador, o espaço da lembrança supera o tempo, ultrapassa-o e permite a aspiração à imortalidade. Numa espécie de epitáfio, o poeta recorda a figura de alguém a quem a vida foi tirada antes de tempo. Aparentemente, o fascínio daquela figura introduzida no poema resulta do simples facto de se tratar de uma figura anónima, daquelas a quem a vida não dá a notoriedade da fama. O apelo à memória resulta então como uma marca que ultrapassa a condição dos homens e transporta-os para uma dimensão universal.
O vendedor de essências Émès jaz num porto sírio. Aparentemente, nada há a registar senão uma simples certidão de óbito, igual a tantas outras. No entanto, por algum motivo, o poeta regista o óbito de um rapaz comum. O poeta traça o percurso deste rapaz e, nos interstícios das suas palavras, existe uma história. Émès, um jovem de vinte e oito anos, partiu de Tenos com o propósito de aprender a ser vendedor de essências. Chegara moribundo, depois de ter adoecido no mar. Enquanto morria, pronunciava as palavras que trazia consigo: “casa”, “pais muito velhos”. A este rapaz desconhecido foi feito um enterro muito pobre.
Assim apresentada, esta história parece concluída. Contudo, as informações breves e conclusivas tropeçam num tempo verbal que se encontra no verso 11. Na palavra “jaz” reside o nó do poema, o lugar onde tudo aquilo que aparenta simplicidade se expande. O encontro entre o tempo passado em que decorre o poema e este presente, subitamente emerso, estabelece a necessidade de um reenquadramento da situação apresentada.
Émès é o nome da figura do poema, da sua personagem. Émès é uma memória. Émès não nos fala, mas o seu silêncio impõe-se-nos. O silêncio dos mortos, que permanece e que se manifesta no modo como o poeta vivo o assume, no presente. Deste modo, o cruzamento do passado com o presente assume-se como o lugar onde a memória dos que a não têm pode encontrar a sua expressão.
Naquela terra de ninguém, a que corresponde o porto, apenas há lugar para o epitáfio. É deste modo que Émès, através da voz emprestada do poeta, permanece. Por via dessa voz, Émès continuará jazente até ao reencontro com aqueles que num último murmúrio evocou. No despojamento absoluto em que Émès se revela, primeiro moribundo, depois morto, é o túmulo [túmulo no sentido que encontramos na música barroca, uma peça que é tocada para deixar memória de alguém que morreu; tradição que Ravel, já no século XX, retoma ao compor uma peça para piano a qual relembra o compositor barroco François Couperin, «Le tombeau de Couperin»] que o poeta lhe erige que redimensiona a sua presença. Os detalhes incrustados no poema são imperceptíveis, mas é por eles que a personagem anónima se emancipa e, pelo seu passado, entretanto revisitado, vem ocupar um lugar em actualização contínua, no espírito do poeta e junto do leitor[1].
Embora imbuído de um propósito, Émès é apresentado como alguém a quem uma força superior traça o destino. Com efeito, não é a ele que é atribuída a instância da viagem. Em vez disso, diz o poema que ele foi trazido até àquele porto, sendo, desse modo assumido como alguém a quem a circunstância de um acaso poderá ter condicionado. Apenas no seu propósito de ser vendedor de essências, Émès nos surge no poema como alguém que comanda os acontecimentos da sua vida. Em tudo o resto, ele é o rosto de um destino trágico que nele se revela. Por outras palavras, Émès é o homem normal, sujeito às vicissitudes da vida e do acaso. Nele encontra o poeta o exemplo a reter de uma humanidade sujeita à contingência. É este o homem que interessa ao poeta, o homem em despojamento absoluto.
Recuperando fragmentos do passado, através do exercício da memória, o poeta traz Émès para a superfície dos dias. Ele é o exemplo, a estátua a erigir, o túmulo onde pode haver sempre o registo, a lembrança feita aos sobreviventes de que a sua transitoriedade é em si mesma uma factualidade, só que, assim sendo, é como se existisse uma continuidade nas coisas perecíveis que, tornadas permanentes, se perpetuam.
O porto, aquele porto em particular, enquanto espaço de circulação, passa a ser ocupado por um pedestal erigido em nome dos homens e de Émès. Não constitui esse pedestal um elemento de culto, mas simplesmente uma marca para recordar, para preservar a memória de uma condição de finitude. No fundo, a figura de Émès è a do homem a quem deus abandona e é deixado ao sabor do vento. É o poeta quem resgata a personagem e a dignifica. A memória do morto, referida no tempo presente do verbo “jazer”, é algo que se prolongará para além do tempo limitado das vidas dos homens.
No poema, o passado é sistematicamente actualizado. Na terra de ninguém em que aquele porto se constitui verifica-se uma pausa, detectada pelo poeta. Uma pausa que corresponde ao falecimento de uma pessoa e que se verifica durante um pequeno período de tempo, pressupondo uma espera. O falecimento é um ponto incontornável da passagem para o lugar sombrio da memória histórica. A figura de Émès, abandonado pelo destino, abandonado por Deus, é recuperada e, desse modo, ao Deus caído que abandonou o homem, sucede a imagem do homem que poderá actualizar sistematicamente essa memória de abandono. Através do seu túmulo, do modo como a ideia de morte se constrói ao longo do poema, o poeta encontra, então, uma forma para resgatar o homem e o tornar seu, em contraponto à sua marca de estrangeiro. O jovem falecido que jaz naquele porto falecido, então resgatado, recupera a existência, através do único modo como ela pode ser recuperada: a memória.
É o poeta quem leva Émès aos seus velhos pais, mantendo-o em posição jazente até ao eventual encontro familiar. Sobrevivido até esse momento, Émès perdurará na memória dos vivos e a história contida no poema perdurará. O seu túmulo, em forma versificada, disso dará testemunho.
O poeta mostra os espaços de uma memória prospectiva. Um cheiro, uma impressão táctil, uma visão. Eis a actualização da memória tornada presente. O poeta não se lamenta e a sua tristeza reside nas sombras profundas.
O dia trouxe consigo o espaço metonímico da memória que se estende em associações, sucessivas e irrecusáveis. Por muito que possam ser dolorosas, as suas marcas instalam-se em silêncio. Um silêncio duro, cru, que remete para esse espaço onde tudo perdura. O porto é um lugar, por excelência, da memória, um lugar de passagem e de gente que não permanece lá. Nada de facto permanece ou, pelo menos, assim parece ser. Maravilhoso e assustador, o espaço da lembrança supera o tempo, ultrapassa-o e permite a aspiração à imortalidade. Numa espécie de epitáfio, o poeta recorda a figura de alguém a quem a vida foi tirada antes de tempo. Aparentemente, o fascínio daquela figura introduzida no poema resulta do simples facto de se tratar de uma figura anónima, daquelas a quem a vida não dá a notoriedade da fama. O apelo à memória resulta então como uma marca que ultrapassa a condição dos homens e transporta-os para uma dimensão universal.
O vendedor de essências Émès jaz num porto sírio. Aparentemente, nada há a registar senão uma simples certidão de óbito, igual a tantas outras. No entanto, por algum motivo, o poeta regista o óbito de um rapaz comum. O poeta traça o percurso deste rapaz e, nos interstícios das suas palavras, existe uma história. Émès, um jovem de vinte e oito anos, partiu de Tenos com o propósito de aprender a ser vendedor de essências. Chegara moribundo, depois de ter adoecido no mar. Enquanto morria, pronunciava as palavras que trazia consigo: “casa”, “pais muito velhos”. A este rapaz desconhecido foi feito um enterro muito pobre.
Assim apresentada, esta história parece concluída. Contudo, as informações breves e conclusivas tropeçam num tempo verbal que se encontra no verso 11. Na palavra “jaz” reside o nó do poema, o lugar onde tudo aquilo que aparenta simplicidade se expande. O encontro entre o tempo passado em que decorre o poema e este presente, subitamente emerso, estabelece a necessidade de um reenquadramento da situação apresentada.
Émès é o nome da figura do poema, da sua personagem. Émès é uma memória. Émès não nos fala, mas o seu silêncio impõe-se-nos. O silêncio dos mortos, que permanece e que se manifesta no modo como o poeta vivo o assume, no presente. Deste modo, o cruzamento do passado com o presente assume-se como o lugar onde a memória dos que a não têm pode encontrar a sua expressão.
Naquela terra de ninguém, a que corresponde o porto, apenas há lugar para o epitáfio. É deste modo que Émès, através da voz emprestada do poeta, permanece. Por via dessa voz, Émès continuará jazente até ao reencontro com aqueles que num último murmúrio evocou. No despojamento absoluto em que Émès se revela, primeiro moribundo, depois morto, é o túmulo [túmulo no sentido que encontramos na música barroca, uma peça que é tocada para deixar memória de alguém que morreu; tradição que Ravel, já no século XX, retoma ao compor uma peça para piano a qual relembra o compositor barroco François Couperin, «Le tombeau de Couperin»] que o poeta lhe erige que redimensiona a sua presença. Os detalhes incrustados no poema são imperceptíveis, mas é por eles que a personagem anónima se emancipa e, pelo seu passado, entretanto revisitado, vem ocupar um lugar em actualização contínua, no espírito do poeta e junto do leitor[1].
Embora imbuído de um propósito, Émès é apresentado como alguém a quem uma força superior traça o destino. Com efeito, não é a ele que é atribuída a instância da viagem. Em vez disso, diz o poema que ele foi trazido até àquele porto, sendo, desse modo assumido como alguém a quem a circunstância de um acaso poderá ter condicionado. Apenas no seu propósito de ser vendedor de essências, Émès nos surge no poema como alguém que comanda os acontecimentos da sua vida. Em tudo o resto, ele é o rosto de um destino trágico que nele se revela. Por outras palavras, Émès é o homem normal, sujeito às vicissitudes da vida e do acaso. Nele encontra o poeta o exemplo a reter de uma humanidade sujeita à contingência. É este o homem que interessa ao poeta, o homem em despojamento absoluto.
Recuperando fragmentos do passado, através do exercício da memória, o poeta traz Émès para a superfície dos dias. Ele é o exemplo, a estátua a erigir, o túmulo onde pode haver sempre o registo, a lembrança feita aos sobreviventes de que a sua transitoriedade é em si mesma uma factualidade, só que, assim sendo, é como se existisse uma continuidade nas coisas perecíveis que, tornadas permanentes, se perpetuam.
O porto, aquele porto em particular, enquanto espaço de circulação, passa a ser ocupado por um pedestal erigido em nome dos homens e de Émès. Não constitui esse pedestal um elemento de culto, mas simplesmente uma marca para recordar, para preservar a memória de uma condição de finitude. No fundo, a figura de Émès è a do homem a quem deus abandona e é deixado ao sabor do vento. É o poeta quem resgata a personagem e a dignifica. A memória do morto, referida no tempo presente do verbo “jazer”, é algo que se prolongará para além do tempo limitado das vidas dos homens.
No poema, o passado é sistematicamente actualizado. Na terra de ninguém em que aquele porto se constitui verifica-se uma pausa, detectada pelo poeta. Uma pausa que corresponde ao falecimento de uma pessoa e que se verifica durante um pequeno período de tempo, pressupondo uma espera. O falecimento é um ponto incontornável da passagem para o lugar sombrio da memória histórica. A figura de Émès, abandonado pelo destino, abandonado por Deus, é recuperada e, desse modo, ao Deus caído que abandonou o homem, sucede a imagem do homem que poderá actualizar sistematicamente essa memória de abandono. Através do seu túmulo, do modo como a ideia de morte se constrói ao longo do poema, o poeta encontra, então, uma forma para resgatar o homem e o tornar seu, em contraponto à sua marca de estrangeiro. O jovem falecido que jaz naquele porto falecido, então resgatado, recupera a existência, através do único modo como ela pode ser recuperada: a memória.
É o poeta quem leva Émès aos seus velhos pais, mantendo-o em posição jazente até ao eventual encontro familiar. Sobrevivido até esse momento, Émès perdurará na memória dos vivos e a história contida no poema perdurará. O seu túmulo, em forma versificada, disso dará testemunho.
«La travail du poète n’est pás de résoudre des problèmes philosophiques ou sociaux: il est de nous offrir la purification poétique au moyen des passions et des pensées dont il a fait l’expérience dans son for intérieur et dans le monde qui l’entoure, comme il arrive à tout homme vivant auquel un destin est échu ici-bas. La purification poétique, cavafy nous la donne, à mon sens, alors qu’il est tombe dans les filets du dieu mort.»[2]
[1] SÉFÉRIS, Georges, Cavafy et Eliot, un parallèle, essai de Georges Séféris aux éditions fata morgana, Éditions Fata Morgana, Montpellier, 1982, pág. 21: «La seule chose que je voudrais que nous retenions, c’est le procédé par lequel, en se servant de détails imperceptibles: (…) Cavafy identifie le passe avec le présent, les rend contemporains. (…) Les personages sont parmis nous, à l’instant présent.»
[2] idem, pp. 53-54.
2 comentários:
Muito bonito, poema e texto a propósito.
Fico contente com o teu contentamento. Bem o sabes.
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