Aí tem Marcas, o violento aquafortista, cuja obra, de uma originalidade quase feroz, arrepia. Vivia à parte e a Arte era tudo para ele, sem se sacrificar ao público, arredado e intratável.
Músico de génio também, as suas águas-fortes, que o eminente crítico Ch. Maurice cita quase como um prodígio, ressentem-se da sua paixão pelas músicas desordenadas e evocadoras de coisas sinistras em decoros simples e trágicos. Um dia deste mês passado chega à polícia, perdido, o olhar fixo, e diz:
- Ela quer que diga que fui eu que a assassinei. Podem-me prender...
Estava doido? Não: a sua confissão era verdadeira. A traços rápidos eis aqui a parte importante da sua história:
Nervoso, e de uma sensibilidade de doente, intratável, como disse, a Vida, que para ele era dura, afligia-o. Desconhecido o seu génio, insultado muitas vezes; quando recolhia, fazia sofrer a mulher, uma pobre alma tímida, que só a ele via na terra. Muitas vezes compreendo esta necessidade de torturar alguém quando sofro... Um dia de perversidade, talvez desesperado, por ver que ela o sofria sempre resignada, matou-a. O crime foi atirado para as costas de um assassino vulgar. A concierge disse ter visto uma cara suspeita subir as escadas do prédio, e ninguém pensou que Marcas fosse capaz de matar.
Mas a sua vida, então, passou a ser estranha. Cavado pelo remorso, alucinado, não podia estar só, viver só: morria de pavor. A música, que ele tocava no violino, enlouquecia, como feita de gemidos de assassinados, ora rouca, com estertores de epilepsia, já triste e simples como fora talvez o último olhar da sua mulher. Perdia-se nos becos, andava sempre, para se cansar, para dormir; mas chegado a casa, impossível!... Ei-la que lhe aparecia, não em atitude de se vir vingar, mas pior, bem pior, resignada e triste!... A princípio vomitava-lhe infâmias, numa fúria. Lembrou-se do álcool, para se esquecer, e nunca conseguiu que ela o deixasse: até que um dia - conta ele -, com um olhar de piedade, a alma de sua mulher materializada pegou-lhe na mão e levou-o à polícia...»
Raúl Brandão, in A Pedra ainda espera dar flor»
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