Acerca de mim

A minha foto
Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A. Vivaldi: La Fida Ninfa (RV 714) / The complete opera, Verona 1732 / Ensemble Matheus

Liberdade

«... sei distinguir as exigências absurdas das inelutáveis. E absurdo é termos perdido para sempre uma forma de liberdade: a que advém de se possuir um elemento próprio. O peixe, tal como o pássaro e o animal terrestre, têm o seu. Thoreau ainda podia contar com a floresta de Walden - mas onde  está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?
Sou obrigado a responder: em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu.  E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.
É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.»

Stig Dagerman, A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer

domingo, 28 de outubro de 2012

Patricia Kaas - Il Me Dit Que Je Suis Belle

Initium

Les violons mêlaient leur rire au chant des flûtes
Et le bal tournoyait quand je la vis passer
Avec ses cheveux blonds jouant sur les volutes
De son oreille où mon Désir comme un baiser
S'élançait et voulait lui parler sans oser.

Cependant elle allait, et la mazurque lente
Le portait dans son rythme indolent comme un vers,
- Rime mélodieuse, image étincelante, -
Et son âme d'enfant rayonnait à travers
La sensuelle ampleur de ses yeux gris et verts.

Et depuis, ma Pensée - immobile - contemple
Sa Splendeur évoquée, en adoration,
Et dans son Souvenir, ainsi que dans un temple,
Mon Amour entre, plein de superstition.

Et je crois que voici venir la Passion.

Paul Verlaine, Poemes Saturniens

sábado, 27 de outubro de 2012

Le plaisir du texte - Roland Barthes (1973)

Il paradiso sui tetti

Sarà un giorno tranquillo, di luce fredda
come il sole che nasce o che muore, e il vetro
chiuderà l'aria sudicia fuori del cielo.

Ci si sveglia un mattino, una volta per sempre,
nel tepore dell'ultimo sonno: l'ombra
sarà come il tepore. Empirà la stanza
per la grande finestra un cielo più grande.
Dalla scala salita un giorno poer sempre
non verranno più voci, né visi morti.

Non sarà necessario lasciare il letto.
Solo l'alba entrerà nella stanza vuota.
Basterà le finestra a vestire ogni cosa
di un chiarore tranquillo, quasi una luce.
Poserà un'ombra scarna sul volto supino.
I ricordi saranno dei grumi d'ombra
appiattati cosí come vecchia brace
nel camino. Il ricordo sarà la vampa
che ancor ieri mordeva negli occhi spenti.

Cesare Pavese, Lavorare stanca

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Rameau, Rondeau des Indes Galantes

Furniture

«The life of the city: a life in rooms, where one sits, or lies down. Personal distance is ruled by the disposition of furniture. In a living room, there is only one thing to do with another person (besides make love - i.e., go to the bedroom): sit and talk. The life of the living  room forces talk upon us, and inhibits the capacity for play and for contemplation.
H concludes: better not to have furniture.»

Susan Sontag, Reborn, Journals & Notebooks, 1947-1963

terça-feira, 23 de outubro de 2012

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

407.

«Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mão tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? Ah, cada cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.»

Fernando Pessoa / Bernardo Soares, Livro do Desassossego 

domingo, 21 de outubro de 2012

John Coltrane - Blue Train (Full Album).wmv

Camilo

«Camilo, de enxada nas mãos, desenterra a defunta, à luz dos relâmpagos, que lhe gravam, na sombra, a silhueta violadora de sepulcros. Se ele visse, naquele instante, a sua figura amortalhada no clarão fosforescente, fugiria da igreja, apavorado, como se fugisse de si mesmo. Não vê. Continua a cavar, a tirar saibro e detritos de ossos e farrapos, o que sobreexiste do nosso ser... Encontra o corpo. Levanta-lhe o lenço da cara. É ela! É ela, mas não é a imagem da vida que lhe falava; é a imagem da morte silenciosa, a suprema tentação para um temperamento camiliano, de animal e fantasma, deste e do outro mundo...
O que ele ama realmente é a morte. Ama-a na Maria do Adro, como outros amam a vida até numa insignificância ou numa qualquer Maria... Camilo apaixonou-se por dois anjos, porque eram anjos de luar ou de sepulcro. Sim, a morte é a sua noiva. Namoram-se durante sessenta anos. Por fim, casaram-se, de repente. Foram gozar a lua de mel nos Campos Elísios...
Agora, não retira a vista da defunta. Tem-na, viva, na lembrança, e morta dentro de uma campa violada. Martiriza-o, sedu-lo, como viva e morta, duplamente. Também ele é um vivo e um morto, um animal febril e um fantasma contagiado desse lume. E arde, como aquela estrela, por nada. Todo o acto em si começa e finda, está, em si, portanto, absolutamente; e a sua existência, ou passada ou actual, afronta, indestrutível, todos os séculos. O destino de uma cousa é existir ou ter existido. O destino do mármore é ser mármore. Se o mudam numa Vénus de Milo, é um caso formal sem importância ou repercussão no Cosmos.
Camilo, junto do cadáver da donzela, sente ignotas impressões, em que há um requinte tormentoso de prazeres fúnebres. Tais impressões emanam da fundura de um túmulo, o mais profundo dos abismos. Vai dar ao inferno. E é o inferno que, neste momento, lhe queima a fronte, - uma espécie de febre quimérica e terrível. Tritura-lhe os nervos, afinando-os, para que eles ressoem as notas mais agudas do sofrimento, que o sofrimento é a música de Orfeu, em pleno Tártaro; uma arte que tem os seus adoradores.»

Teixeira de Pascoaes, O Penitente

sábado, 20 de outubro de 2012

The Jesus And Mary Chain - April Skies (Video)

Liberdade

«Ora, a liberdade não está ligada obrigatoriamente a um conteúdo determinado. Não é livre o homem que pensa isto e não pensa aquilo ou o que faz em cadeiras em lugar de fabricar caixas de fósforos. É livre o homem que sustenta com não importa que conteúdo um tipo de relação, o qual a sua consciência reconhece como não contrário ao exercício da sua vontade. Em sentido absoluto nenhum homem é livre pois a consciência é permanentemente consciência de mundo, acção sempre inscrita num horizonte inalienável e jamais o homem poderá ser aquele que lava as mãos sem sujar a água onde as lava. Mas a liberdade nós a definimos relativamente, dentro de um horizonte humanizado, no interior das suas possibilidades. Nesse sentido a liberdade é definida pela auto-transparência, pelo sentimento de uma proximidade entre o nosso ser e o nosso fazer, cuja expressão-limite e a única pura é o próprio amor. O homem do amor é sempre um homem livre.
Ora, nada impede um ortodoxo de ser um homem de um tal amor. Ao contrário, tudo o impele a sê-lo e na realidade não será um autêntico ortodoxo se não for o homem desse amor a uma verdade na qual consente em se perder por se reconhecer nela a sua própria verdade. Quem quer salvar a sua alma perdê-la-á. O amor é sempre esta perda e esta salvação, todo e qualquer amor desde o mais simples amor de homem e mulher ao amor de Deus.
Todos os caminhos são bons e o homem livre neles se o amor conduz a eles e eles ao amor. À heterodoxia de conteúdo expectante e neutro, a esta partida para as estrelas para de lá pesar em balanças invisíveis as verdades humanas, convém substituir uma heterodoxia da humanidade, do simples fervor humano de contribuir com amigos e inimigos para luta inacabada e talvez inacabável da cidade da paz possível. Dizer não àqueles que já não vêem a salvação senão no recurso à universal violência, insensata e cósmica para salvar um mundo que não merece ser salvo por tal preço e talvez por nenhum preço; dizer sim ao próximo em sua imediata aflição e estender à nossa volta, se a coragem e o fervor não nos faltarem, o espírito da comunidade de destino humano, tal me parece hoje ser o conteúdo de uma liberdade actuante e viva.»

Eduardo Lourenço, Heterodoxias  

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Orfeo und Apollo

Apolo

«Apolo, que dispensa a homens e mulheres os remédios para as doenças graves, e concede a cítara e a inspiração das Musas a quem ele quer, trouxe também a boa legislação, sem guerra, aos corações; e governa o templo profético.
Deixou viver na Lacedemónia e em Argos e na sagrada Pilo os valentes descendentes de Héracles e os descendentes de Egímio. Mas é a mim que cabe cantar a famosa glória que vem de Esparta.»

Píndaro, Odes Píticas para os vencedores 

Handel, G.F. - Messiah - The trumpet shall sound - Florian Boesch, Ensemble Matheus - Vienna

Diana

«(...) Se considerarmos que o arco de prata, idêntico ao crescente lunar, e por consequência a imagem emblemática da deusa, serve aqui de instrumento ao exercício da autoridade divina, e que nesta operação é o próprio instrumento que é posto à prova, constatamos que, desempenhando a prata (reino mineral), o papel activo e transcendente em relação aos outros dois reinos (vegetal e animal), a sua suprema operação efectua-se no domínio moral: a Cidade dos malfeitores, cujo carácter desagregador evoca instantaneamente a função, na Arte, do espírito do sal amoníaco. Porque «um pouco de mercúrio lançado numa solução de prata pelo espírito do sal amoníaco, atrai a prata e divide-a em inúmeros ramos e folhagens que representam a árvore de Diana». Deste modo, o arco de prata e a Cidade dos malfeitores, ou simplesmente a maldade (esse outro mineral), situam-se, um em relação ao outro, numa mesma região espiritual: a seta de Diana, para atingir o último objectivo, deve atravessar os três reinos. Evolução cíclica, cujos estádios Actéon sonhou percorrer segundo os gestos do seu demónio tutelar.

(Entretanto, no que a exegese desta parábola parece pecar gravemente, é no facto de não considerar, de todo, que o olmo, o carvalho, o animal e a Cidade dos malfeitores, estão exactamente no mesmo plano; que se situam lado a lado no espaço; que não existe outro reino senão o deste espaço que é mítico; e que longe de representar uma gradação, uma progressão, estes quatro objectos têm a mesma qualidade em relação a Diana, e constituem os quatro fins dos quatro movimentos que ela efectua, desenvolvendo «a sua altura, a sua profundidade, a sua largura e o seu cumprimento«, não no sentido em que o olmo seria a sua altura, nem a Cidade dos malfeitores a sua profundidade: na verdade, cada um destes objectos dá lugar aos quatro movimentos que se reproduzem por quatro vezes, porque estes objectos são completos como é igualmente completo o gesto de Diana).

Diana atinge sucessivamente duas árvores, o olmo e o carvalho, e esta dualidade (a árvore da vida e a árvore da ciência ou da morte) diz respeito à sua dupla natureza: mortífera e luminosa, ou melhor, luminosa porque mortífera. O seu duplo estado: infecundade, mas fecundável, ou melhor fecundante porque infecundada. Um estado de integridade baseado na morte da virilidade exterior, tendo esta última sido suspensa como uma ameaça sobre a sua integridade imortal: e a perda da virgindade prefigurando aqui a morte no próprio seio do ser incorruptível. E ela própria, virgem, agindo porém como princípio fecundante, pois a virilidade que ela atinge no exterior renasce dentro dela como princípio de morte no seio do ser.»

Pierre Klossowski, O Banho de Diana 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Telemann: Laudate Jehovam


Juízo final

«A propósito da ressurreição da carne, os teólogos cristãos interrogavam-se, sem conseguirem encontrar uma resposta satisfatória, se o corpo ressuscitaria no estado em que se encontrava no momento da morte (talvez velho, careca e sem uma perna) ou na integridade da juventude. Orígenes cortou cerce esta discussão infinda, ao afirmar que a ressuscitar não será o corpo mas, sim, a sua figura, o seu eidos. A fotografia e, neste sentido, uma profecia do corpo glorioso.
É sabido que Proust era um obcecado pela fotografia e que procurava, por todos os meios, obter a fotografia das pessoas que amava e admirava. Um dos rapazes por quem se apaixonou quando tinha 22 anos, Edgar Auber, ofereceu-lhe a seu insistente pedido, um retrato. Nas costas da fotografia escreveu, à guisa de dedicatória: Look at my face: my name is Might Have Been; I am also called No More, Too Late, Farewell ((Olha para a minha cara. O meu nome é Poderia Ter Sido; também me chamo Nunca Mais, Demasiado Tarde, Adeus). A dedicatória é, certamente, pretensiosa mas exprime, bem, a exigência que anima todas as fotografias e capta o real que está constantemente a perder-se para o tornar, de novo, possível.
De tudo isto a fotografia exige que nos recordemos, de todos estes nomes perdidos as fotografias prestam testemunho, tal como o livro da vida que o novo anjo apocalíptico - o anjo da fotografia - tem entre mãos no fim dos dias, ou seja, em cada dia.»

Giorgio Agamben, Profanações

sábado, 13 de outubro de 2012

EL PERRO DEL MAR - WALK ON BY (OFFICIAL VIDEO)

História da noite

Sempre ao longo das suas gerações
os homens foram construindo a noite.
Ao princípio era só cegueira e sono
e espinhos que laceram o pé nu
e receio dos lobos.
Nunca saberemos quem forjou a palavra
para o intervalo e sombra
que divide os dois crepúsculos;
nunca saberemos em que século foi sinal
do espaço das estrelas.
Outros engendraram o mito.
Fizeram-na mãe das Parcas tranquilas
que tecem o destino
e sacrificavam-lhe as ovelhas negras
e o galo que adivinha o seu fim.
Doze casas lhe deram os Caldeus;
infinitos mundos, o Pórtico.
Hexâmetros latinos a moldaram
e o terror de Pascal.
Luis de Léon viu nela a pátria
da sua alma estremecida.
Agora sentimo-la inesgotável
como um vinho velho
e ninguém pode contemplá-la sem vertigens
e o tempo carregou-a de eternidade.

E pensarmos que não exixtiria
sem esses frágeis instrumentos, os olhos.

Jorge Luis Borges, História da noite

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Anita O'Day - That Old Feeling

O Mestre

«Se o mestre houver de ser a ocasião que faz o aprendiz lembrar-se, então não pode contribuir para que este se recorde de que sabe propriamente a verdade, uma vez que o aprendiz é de facto a não-verdade. Sendo assim, aquilo de que o mestre pode ser ocasião para que o aprendiz se recorde é que este é afinal a não-verdade. Porém, com esta reflexão, o aprendiz fica precisamente excluído da verdade, mais ainda do que quando se encontrava ignorante de que era a não-verdade. Deste modo, o mestre afasta por conseguinte de si o aprendiz precisamente ao fazê-lo lembrar-se; só que o aprendiz, pelo facto de assim se ver obrigado a virar-se para dentro de si mesmo, não descobre que sabia previamente a verdade, antes descobre a sua não-verdade, um acto de consciência em cuja perspectiva se aplica o princípio socrático de que o mestre é apenas ocasião, seja ele quem for, mesmo que seja um deus; porque a minha própria não-verdade só a posso descobrir por mim mesmo, já que, só quando eu descubro que assim, é, está tal facto descoberto, mas não antes, ainda que todo o mundo o soubesse. (À luz da pressuposição que admitimos sobre o instante, esta torna-se a única analogia com a atitude socrática.)

Soren Kierkegaard, Migalhas Filosóficas

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

The National Sorrow (live)

Redemption

«Relativists like myself agree that the collapse of Marxism has helped us see why politics should not try to be redemptive. But that is not because there is another sort of redemption available, the sort that Catholics believe is found in the Church. It is because redemption was a bad idea in the first place. Human beings need to be made happier, but they do not need to be redeemed, for they are not degraded beings, not immaterial souls imprisoned in material bodies, not innocent souls corrupted by origin sin. They are, as Nietzsche put it, clever animals, clever because they, unlike the other animals, have learned how to cooperate with one another in order better to fulfill one another's desires. In the course of history, we clever animals have acquired new desires, and we have become quite different from our animal ancestors. For our cleverness has not only enabled us to adjust means to ends, it has enabled us to imagine new ends, to dream up new ideals. Nietzsche, when he described the effects of the cooling-off of the sun, wrote: "And so the clever animals had to die." He would have done better to have written: "And so the brave, imaginative, idealistic, self-improving animals had to die." The notion of redemption presupposes a distinction between the lower, mortal, animal parts of the soul, and the higher, spiritual, imoortal part. Redemption is what would occur when the higher finally triumphs over the lower, when reason conquers passion, or when grace defeats sin. In much of the onto-theological tradition, the lower-higher distinction is construed as a distinction between the part that is content with finitude and the part that yearns for the infinite.»

Richard Rorty, An Ethics for Today, Finding common ground between philosophy and religion

domingo, 7 de outubro de 2012

Efterklang - Hollow Mountain

«Em alto mar, quando se encontra o Holandês Voador e sobrevém o inevitável naufrágio, manda a tradição que o marinheiro, para se salvar, se agarre à figura de proa. Eurídice não se vira, ondeia nas águas em tempestade olhando atónita e provocatória para o vazio do céu, do mar, não para Orfeu agarrado às suas saias. Quantas Eurídices, no meio de figuras de proa. O seio aflora e desaparece no peplo e no escuro; o fundo escuro das águas espera por eles. Eu, agarrando-me a ela, salvei-me. Queria levá-la comigo para casa, como tantos outros marinheiros fizeram, talvez até colocá-la sobre o meu sepulcro, apesar de os sacerdotes resmungarem e porem entraves, por não quererem em terra sagrada aquelas mulheres seminuas. O mar arrastou para a costa tantas figuras de proa, mas não Maria. Aliás, arrastou-a também a ela, mas depois de uma longuíssima viagem por todos os oceanos, até ao outro cabo do mundo, até aqui abaixo, doutor, uma viagem que corrói e desgasta dia após dia e onde se chega desfeito.»

Claudio Magris, Às Cegas

sábado, 6 de outubro de 2012

Dum Dum Girls - Bedroom Eyes (Live on KEXP)

Magnânimo

«É próprio do magnânimo não pedir ajuda a ninguém ou então só a custo, mas estar sempre pronto para ajudar; ser grandioso junto dos que têm uma posição de poder e daqueles que têm sucesso, mas ser moderado junto dos que estão numa posição média, porque é difícil, mas dá uma grande satisfação, ser superior aos primeiros mas não dá uma grande satisfação ser-se superior aos segundos, porque é fácil. Exaltar-se junto dos que nos são superiores não é ignóbil, mas fazê-lo junto dos humildes é mesquinho, tal como se os fortes quisessem medir forças com os que são muito fracos. O magnânimo não procura ocupar os lugares de honra habitualmente cobiçados. Não é muito activo, é até lento a agir, a não ser quando se trata de uma grande honra ou de um grande feito. E entra em acção em poucas situações, e só quando se trata de grandes obras e de nomeada. É necessário também que o magnânimo seja transparente tanto em questões de ódio como em questões de amor (porque procurar esconder-se revela medo e uma despreocupação com a verdade maior do que com a fama); que fale e aja abertamente (é franco, fala sinceramente porque despreza as consequências da sua franqueza, e é sincero excepto quando usa ironia relativamente aos outros). Ele é incapaz de viver a sua vida seguindo um outro qualquer, a não ser orientado por um amigo. Uma tal conduta seria subserviente e assim todos os bajuladores são servis e todos os inferiores são bajuladores. Não se deixa arrebatar facilmente porque nada tem facilmente uma grande importância para ele. Demais, não guarda ressentimento. Pois, não é próprio do magnânimo recordar-se das coisas, sobretudo se são especialmente más, mas antes ultrapassá-las. Demais, não entra em coscuvilhices acerca de terceiros. Porque não falará de outrem como não fala de si. Nem sequer lhe interessa ser elogiado ou que os outros sejam criticados. Não elogia facilmente, mas também não diz dos outros, nem sequer dos seus inimigos, a não ser que tenham cometido alguma insolência. Queixa-se o menos possível e não pede que se interceda em seu favor tanto em situações de pouca monta quanto em situações de grande aflição. Comportar-se desse modo era levar as coisas demasiadamente a sério. É mais capaz de possuir coisas belas e inúteis do que úteis e vantajosas. Aquelas revelam uma disposição de carácter mais independente. Distinguem ainda o magnânimo o modo de andar lento, a voz grave, a dicção estável. Quem se preocupa apenas com poucas coisas não ficará facilmente sob pressão, e quem não faz grande caso de coisa nenhuma não terá nenhuma tensão. Tal é o magnânimo, porque uma voz aguda e os movimentos apressados resultam de uma grande pressão que se faz sentir.»

Aristóteles, Ética a Nicómaco (1124b20 - 1125a15)  

Grizzly Bear "Yet Again" Live on Soundcheck in The Greene Space

Soleil et Chair (III)

«Si les temps revenaient, les temps qui sont venus!
- Car l'Homme a fini! l'Homme a joué tous les rôles!
Au grand jour, fatigué de briser des idoles,
Il ressuscitera, libre de tous ses Dieux,
Et, comme il est du ciel, il scrutera les cieux!
L'Idéal, la pensée invincible, éternelle,
Tout le dieu qui vit, sous son argile charnelle,
Montera, montera, brûlera sous son front!
Et quand tu le verras sonder tout l'horizon,
Contempteur des vieux jougs, libre de toute crainte,
Tu viendras lui donner la Rédemption sainte!
- Splendide, radieuse, au sein des grandes mers
Tu surgiras, jetant sur le vaste Univers
L'Amour infini dans un infini sourire!
Le Monde vibrera comme une immense lyre
Dans le frémissement d'un immense baiser

- Le Monde a soif d'amour: tu viendras l'apaiser.»

Rimbaud


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Bat For Lashes - Daniel

Imagem

«A imagem é um ser cuja essência é ser uma espécie, uma visibilidade ou uma aparência. Especial é o ser cuja essência coincide com o seu dar-se a ver, com a sua espécie.
O ser especial é absolutamente insubstancial. Não tem lugar próprio, mas acontece a um sujeito e está neste como um habitus ou um modo de estar, como a imagem está no espelho.
A espécie de cada coisa é a sua visibilidade, isto é, a sua pura inteligibilidade. Especial é o ser que coincide com o seu tornar-se visível, com a sua revelação.
O espelho é o lugar onde descobrimos que temos uma imagem e, ao mesmo tempo, que essa imagem pode ser separada de nós, que a nossa "espécie", ou imago, não nos pertence. Entre a percepção da imagem e o reconhecermo-nos nela medeia um intervalo, a que os poetas medievais chamavam amor. O espelho de Narciso é, neste sentido, a fonte do amor, a experiência inaudita e feroz de que a imagem é, e não é, a nossa imagem.
Abolindo o intervalo, se nos reconhecermos como não sendo - nem que seja por um instante - desconhecidos e amados na imagem, isso significa que já não podemos amar, acreditar que somos donos da própria espécie, coincidir com esta. Se se prolongar, indefinidamente, o intervalo entre a percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada como fantasma e o amor cai na psicologia.»

Giorgio Agamben, Profanações

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Pat Metheny Group - We live here, live in japan 1995 (full dvd)

Heterodoxia

«O velho mito germânico de Migdar, a serpente que morde em círculo a própria cauda, é um símbolo de sugestões perpétuas. Podemos ver nele uma imagem da vida como um todo que solicitou, no seu seio, a necessidade mesma da morte. Ou um desenho exacto da cadeia inelutável que conserva, unidas desde o interior, a sucessão temporal das coisas e dos pensamentos. Ou a dialéctica viva suscitadora simultaneamente do bem e do mal, do senhor e do servo, um ao outro unidos como o corpo à sombra. E também pode figurar como parábola permanente duma condição terrestre onde a honestidade é honesta pela desonestidade dos desonestos e o vício vicioso pela virtude dos virtuosos. E finalmente, pode ser uma descrição precisa do mundo das palavras, universo sonoro que vive do silêncio donde emerge ou das palavras contrárias que repudia.
Tudo isso é Migdar e o reconhecimento de Migdar, como essência da realidade, chama-se Heterodoxia. Ou, traduzindo o mito, heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações, nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça, devorando com a certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de Ortodoxia, assim como a convicção inversa da não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo.
Fiel ao símbolo que a representa e à vida que nele se manifesta, a heterodoxia não é o contrário de ortodoxia, nem de niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos. É o humilde propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo motivo de não sabermos em absoluto qual deles é, na realidade, o melhor de todos os caminhos.
O primeiro que convém saber é que a heterodoxia não é fácil. Serviço divino a pouco cometido, paga-o a moeda que os deuses amam: a amargura e a solidão. Obedientes a um único mandamento, o de não recusar para as trevas aquilo que se vê na luz, essa exigência dá ao rosto dos heterodoxos uma aparência inequívoca de dureza. Porque o Senhor é um só e os amigos, a mulher, o pai e a mãe não lhe guardam fidelidade, o heterodoxo não pode fazer outra coisa que declarar que "pai e mãe e amigos" são os que servem o deus e não aqueles que o mundo aponta segundo a carne. Mas trocar os amigos, o pai e a mãe, pela loucura invisível da Verdade, é ofender o mais originário dos mandamentos, o grito mais veemente da claridade animal e por isso o preço da ofensa é pago em amargura e solidão. E na boca daqueles cujo espírito é paz e cujo coração está cheio de uma piedade comovida pelo destino de cada homem, o deus da heterodoxia põe a palavra "guerra". Porque a paz do mundo é a negação do homem, os que amam o homem, a ponto de se consumir nessa talvez inútil paixão, declaram que vêm trazer a guerra.»

Eduardo Lourenço, Heterodoxias

terça-feira, 2 de outubro de 2012

THE ROLLING STONES TIME IS ON MY SIDE OFFICIAL PROMO VIDEO (VERSION 2)

Piedras y Chile

Por aquí habré pasado tantas veces,
No puedo recordarlas. Más lejana
que el Ganges me parece la mañana
o la tarde en que fueron. Los reveses
de la suerte no cuentan. Ya son parte
de esa dócil arcilla, mi pasado,
que borra el tiempo o que maneja el arte
y que ningún augur ha descifrado.
Tal vez en la tiniebla hubo una espada,
acaso hubo una rosa. Entretejidas
sombras las guardan hoy en sus guaridas.
Sólo me queda la ceniza. Nada.
Absuelto de las máscaras que he sido,
seré en la muerte mi total olvido.

Jorge Luis Borges, Los Conjurados

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Beethoven Concerto No. 3 Mvt. 1 - Artur Rubinstein (1of2)

Le Orecchie Malate di Beethoven

Fra il diciottesimo e il diciannovesimo secolo viveva a Vienna un musicista di nome Beethoven. Il popolo lo canzonava perché era un tipo stravagante, basso di statura e con una buffa testa. I borghesi si scandalizzavano per le sue composizioni. «Però,» dicevano «peccato, quest'uomo ha le orecchie malate. La sua mente concepisce dissonanze spaventose. Tuttavia, poiché egli afferma trattarsi di sublimi armonie e tenuto conto del fatto facilmente dimostrabile che le nostre orecchie sono sane, vuol dire che le sue orecchie sono malate. Peccato davvero!».
I nobili invece, i quali grazie ai diritti che il mondo aveva loro conferito riconoscevano anche gli obblighi che dovevano rispettare nei confronti di esso, egli diedero il denaro necessario perché potesse comporre le sue opere. I nobili avevano anche la facoltà di far eseguire un'opera di Beethoven all'Opera imperiale. Ma i borghesi che gremivano il teatro decretarono un tale insuccesso al lavoro che non si ebbe più il coraggio di organizzare una replica.
Da allora sono trascorsi ormai cent'anni e i borghesi ascoltano con commozione le opere del musicista ammalato, pazzo. Sono forse divenuti nobili, come quei nobili del 1819, e hanno forse maturato un sentimento di rispetto per la volontà del genio? No, si sono ammalati tutti.Tutti adesso hanno le orecchie malate di Beethoven. Per un intero secolo le dissonanze del divino Beethoven hanno tormentato le loro orecchie. E le orecchie non hanno resistito. Tutti i particolari anatomici, tutti gli ossicini, i labirinti, i timpani e le trombe hanno assunto le forme malate caratteristiche dell'orecchio di Beethoven. E quel volto buffo, che i monelli rincorrevano canzonandolo, è divenuto per il popolo il volto spirituale del mondo.
È lo spirito che si costruisce il proprio corpo.

Adolf Loos, Parole nel vuoto (1913)