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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Never Weaken [ Harold Lloyd ] 1921

Momentos Inaugurais

«A meio da noite acordei e ouvi a Gertrudes a cantar uma cantiga popular. A lamparina do quarto estava acesa. Um presépio com pastores adorando o Deus menino brilhava vagamente sobre a cómoda alta que tínhamos no quarto. Numa mesa branca, de abas, entre os presentes do meu irmão, estava o cinematógrafo com a sua chaminé curvada, a sua lente de formas suaves no tubo de latão, o suporte para os carretes de filme.
A decisão que tomei foi rápida. Acordei o meu irmão e propus-lhe um negócio: dava-lhe os meus cem soldadinhos de chumbo em troca do cinematógrafo. Como ele já tinha um exército enorme e estava sempre metido em guerras com os amigos, a proposta foi aceite para contento de ambos.
Aquele cinematógrafo era meu!
Não se tratava de um aparelho complicado. A fonte luminosa era uma lâmpada de querosene e a manivela estava ligada a uma roda dentada. No lado posterior da caixa de metal havia um espelho simples, reflector, e atrás da lente havia um suporte para pôr negativos a cores. Com o aparelho vinha ainda uma caixa quadrada, de cor violeta. Continha não só imagens em vidros, como também uma fita cor de sépia, de 35 mm. Esta fita tinha uns três metros e tinha as extremidades coladas uma à outra formando uma cinta sem fim. Na tampa da caixa vinha o título da película: Frau Holle. Ninguém me pôde dizer quem era esta senhora Hole, mas mais tarde vim a saber que se tratava de uma figura a crença popular, equivalente à deusa do amor dos países mediterrâneos.
Na manhã seguinte meti-me no guarda-fato enorme do nosso quarto, coloquei o cinematógrafo em cima de um caixote, acendi a lâmpada e dirigi o foco luminoso para a parede branca. Depois pus o filme e apareceu logo a imagem de um prado. Nesse prado estava uma rapariga nova, meio adormecida, que vestia, segundo me pareceu, um traje regional. Quando dava à manivela (não, isto não é possível explicar-vos, não encontro palavras para descrever a minha excitação, só vos posso dizer que, sempre que quero, consigo recordar o cheiro que exalava o metal aquecido da caixa, o cheiro do produto contra as traças que havia no guarda-fato, o pó, a pressão da minha mão na manivela, o rectângulo projectado, a tremer).
Dava à manivela, dizia, e a rapariga acordava, sentava-se, levantava-se devagar, estendia os braços, dava uma volta e desaparecia pela direita. Continuando a dar à manivela ela voltava a aparecer deitada no prado e repetia exactamente os mesmos movimentos. Movia-se!»

Ingmar Bergman, Lanterna Mágica

domingo, 26 de agosto de 2012

Arvo Pärt, Stabat Mater (The Hilliard Ensemble)

Thomas Cole, «The Course of the Empire, Desolation»

My Philosophy of Life

Just when I thought there wasn't room enough
for another thought in my head, I had this great idea -
call it a philosophy of life. If you will. Briefly,
it involved living the way philosophers live,
according to a set of principles. Ok, but whitch ones?

That was the hardest part, I admit, but I had a
kind of dark foreknowledge of what it would be like.
Everything, from eating watermelon or going to the bathroom
or just standing on a subway platform, lost in thought
for a few minutes, or worrying about rain forests,
would be affected, or more precisely, inflected
by my new attitude. I wouldn't be preachy,
or worry about children and old people, except
in the general way prescribed by our clockwork universe.
Instead I'd sort of let things be what they are
while injecting them with the serum of the new moral climate
I thought I'd stumbled into, as a stranger
accidentaly presses against a panel and bookcase slides inside
and the bookcase slides shut, as is customary on such occasions.
At once a fragrance overwhelms him - not saffron, not lavender,
but something in between. He thinks of cushions, like the one
his uncle's Boston bull terrier used to lie on watching him
quizzically, pointed ear-tips folded over. And then the great rush
is on. Not a single idea emerges from it. It's enough
to disgust you with thought. But then you remember something
William James
wrote in some book of his you never read - it was fine, it had the
fineness,
the powder of life dusted over it, by chance, of course, yet
still looking
for evidence of fingerprints. Someone had handled it
even before he formulated it, though the thought was his and
his alone.

It's fine, in summer, to visit the seashore.
There are lots of little trips to be made.
A grove of fledgling aspens welcomes the traveler. Nearby
are the public toilets where weary pilgrims have carved
their names and adresses, and perhaps messages as well,
messages to the world, as they sat
and thought about what they'd do after using the toilet
and washing their hands at the sink, prior to stepping out
into the open again. Had they been coaxed in by principles,
and were their words philosophy, or however crude a sort?
I confess I can move no farther along this train of thought -
something's blocking it. Something I'm
not big enough to see over. Or maybe I'm frankly scared.
What was the matter with how I acted before?
But maybe I can come up with a compromise - I'll let
things be what they are, sorte of. In the autumn I'll put up jellies
and preserves, against the winter cold and futility,
and that will be a human thing, and intelligent as well.
I won't be embarrassed by my friends' dumb remarks,
or even my own, though admittedly that's the hardest part,
as when you are in a crowded theater and something you say
riles the spectator in front of you, who doesn't even like the idea
of two people near him talking together can have a crack at him -
this thing works both ways, you know. You can't always
be worrying about others and keeping track of yourself
at the same time. That would be abusive, and about as much fun
as attending the wedding of two people you don't know.
Still, there's a lot of fun to be had in the gaps between ideas.
That's what they're made for! Now I want you to go out there
and enjoy yourself, and yes, enjoy your philosophy of life, too.
They don't come along every day. Look out! There's a big one...

John Ashbery


Cabeça de Velho - 1923, Cândido Portinari

Do not stand at my grave and weep

Do not stand at my grave and weep
I am not there. I do not sleep.
I am a thousand winds that blow.
I am the diamond glints on snow.
I am the sunlight on ripened grain.
I am the gentle autumn rain.
When you awaken in the morning's hush
I am the swift uplifting rush
Of quiet birds in circled flight.
I am the soft stars that shine at night.
Do not stand at my grave and cry;
I am not there. I did not die.

Mary Elizabeth Frye

MICHAEL SPYRES as Mazzoni's ANTIGONO

Velhice


O seu olhar já não fixava, vagueava. Um resquício do que ele antes fora, a espaços, emergia no modo como, juntamente com um sorriso atrevido, procurava mostrar presença, dizer que ainda ali estava, para durar, como, por vezes, teimava mecanicamente em avisar. O seu atrevimento, contudo, não era genuíno mas o resultado de uma atitude que, durante toda a vida, procurara esconder mas que, agora, privado de muitas das suas capacidades, evidenciava numa espécie de vitória perante o seu estado. Pura ilusão.
A barba por ajeitar e o cabelo por cortar conferiam-lhe um ar de abandono, que ela, a esposa, apesar dos seus próprios males, teimava em contrariar.
O amor é um lugar difícil de compreender. Imaginamos o amor como a qualidade mais nobre, aquela que é capaz de elevar o ser humano a uma dimensão divina. No entanto, pelo amor, somos capazes de iludir aquilo que somos e de, assim, nos evadirmos de nós próprios e dos nossos males. Afinal, o amor é uma fraqueza, porque nos disponibiliza para o sofrimento transferido e corrompe aquilo que de mais genuíno trazemos em nós.
Ouvi falar do amor desde que nasci, mas o amor verdadeiro, aquele a que consigo associa a imagem da justiça, nunca encontrei. Era de amor que falavam aqueles de quem o amor se esquecia e que, numa espécie de sublimação messiânica, procuravam explicar o vazio de um amor a que não eram capazes de ascender em vida.
O amor, assim entendido, assemelhava-se a uma espécie de crença e, a partir do momento em que a crença se instalava, perante a irresolubilidade da vida, alimentavam-se de uma imaginação que lhes sugeria a felicidade em imagens de pessoas infelizes.
Durante muito tempo senti um incómodo perante o amor assim entendido. Com o tempo e com os cabelos brancos, compreendi que, ao tentar pôr em evidência este estado de coisas, estaria a retirar a luz da esperança às pessoas que me eram mais queridas.
Foi então que desisti.
A partir de um certo momento na minha vida passei a servir-me das conversas dos outros para perceber, antes de dizer alguma coisa, aquilo que poderia acrescentar sem desafinar.


Divino Sospiro - Bach Cantata BWV 63

Ideologias

«No Ocidente, em certas épocas, mas sobretudo a partir do princípio da modernidade, a consciência do mal generalizado foi mais intensa. Este fenómeno deu lugar, por um lado, à construção de sistemas destinados a repará-lo ou a promover a reforma das estruturas sociais e, por outro lado, à imaginação de tempos e lugares donde o mal desapareceria ou se neutralizaria de maneira tão eficaz que não chegaria a afectar a sociedade. Aos sistemas de reorganização social, chamaram-se ideologias; à imaginação de lugares ideais onde reinaria a perfeita harmonia, chamaram-se utopias.
O homem sempre sonhou com a superação do mal, da doença e da miséria. Sempre se esforçou por descobrir como alcançar tal objectivo: no Oriente e nas civilizações primitivas, de forma quotidiana e sem alterar as regras sociais; no Ocidente, por meio de reformas profundas procurando a raiz do mal social. A actual descrença na eficácia das soluções antes defendidas com tanto empenho e sacrifício por gerações e gerações de lutadores entusiastas resulta de se ter verificado a inoperância dos sistemas propostos com base em determinadas ideologias, fossem elas o socialismo, o comunismo, os diversos fascismos, os vários regimes conservadores e a própria democracia. Dir-se-ia que o homem ocidental confiou demasiado em sistemas políticos todos eles limitados e incapazes de resolver os males mais preocupantes da Humanidade.»

José Mattoso, Levantar o Céu