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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

domingo, 30 de outubro de 2011

Justiça

«É natural ressentir, e repelir ou retaliar, qualquer mal feito ou tentado contra nós, ou contra aqueles com os quais sentimos empatia. Não é necessário discutir aqui a origem deste sentimento. Seja ele um instinto ou o resultado do uso da inteligência, é, sabêmo-lo, comum a toda a natureza animal; pois qualquer animal tenta ferir os que o feriram, ou que pensa estarem prestes a feri-lo a si ou às sua crias. Os seres humanos, neste ponto, apenas diferem dos outros animais em dois aspectos. Primeiro, em serem capazes de terem empatia, não apenas com as suas crias, ou, como alguns dos animais mais nobres, com algum animal superior que seja amável para com eles, mas com todos os seres humanos, e mesmo com todos os seres sencientes. Segundo, em terem uma inteligência mais desenvolvida, o que confere um maior alcance a todos os seus sentimentos, sejam eles de preocupação consigo mesmo ou de empatia. Graças à sua inteligência superior, mesmo sem ter em conta o maior alcance da sua empatia, um ser humano é capaz de dar-se conta da comunidade de interesses entre si e a sociedade humana da qual faz parte, de tal forma que qualquer conduta que ameace a segurança da sociedade em geral é ameaçadora é ameaçadora para a sua própria segurança e desperta o seu instinto (se é que é um instinto) de autodefesa. A mesma superioridade de inteligência, aliada à possibilidade de sentir empatia para com os seres humanos em geral, permite-lhe ligar-se à ideia colectiva da sua tribo, do seu país, ou da humanidade, de tal maneira que qualquer acto prejudicial para eles desperta o seu instinto de empatia, e insta-o a resistir.
O sentimento de justiça, naquele dos seus elementos que consiste no desejo de punir, é, portanto, suponho, o sentimento natural de retaliação ou vingança, tornado pela inteligência e empatia aplicável àquelas ofensas, isto é, àquelas mágoas, que nos ferem por meio da sociedade no seu todo, ou em comum com ela. Este sentimento, em si, nada tem de moral; o que é moral é a sua subordinação exclusiva às empatias sociais, de tal forma que espera e obedece ao seu chamamento. Pois o sentimento natural tende a fazer-nos ressentir indiscriminadamente o que qualquer pessoa faça de desagradável para nós; mas, quando moralizado pelo sentimento social, apenas actua nas direcções conformes ao bem geral: as pessoas justas ficam ofendidas com um mal para a sociedade, embora não seja um mal para si mesmas, e não ficam ofendidas com um mal para si mesmas, por mais doloroso, a menos que seja do tipo que a sociedade tem um interesse com elas em reprimir.
Não é uma objecção a esta doutrina afirmar que, quando sentimos o nosso sentimento de justiça ultrajado, não estamos a pensar na sociedade no seu todo, ou em qualquer interesse colectivo, mas apenas no caso particular. É certamente algo muito comum, embora seja o contrário do recomendável, sentir ressentimento apenas por sofrer uma dor; mas uma pessoa cujo ressentimento é realmente um sentimento moral, isto é, uma pessoa que avalia se um acto é censurável antes de se permitir ter ressentimento - tal pessoa, embora possa não dizer expressamente a si mesma que defende o interesse da sociedade, sente por certo que está a defender uma regra que existe para o benefício dos outros, mas também de si próprio. Se não sente isto - se encara o acto apenas na medida em que a afecta pessoalmente - não é conscienciosamente justa; não está a preocupar-se com a justiça das suas acções. Isto é admitido até mesmo por pensadores morais anti-utilitaristas. Quando Kant (como antes assinalámos) propõe como princípio fundamental da moral «Age de tal forma que a regra da tua acção possa ser adoptada como lei por todos os seres racionais», reconhece virtualmente que o interesse da humanidade, no seu conjunto, ou pelo menos da humanidade considerada indescriminadamente, deve estar na mente do agente quando decide conscienciosamente sobre a moralidade do acto. De outra forma está a usar palavras sem sentido: pois não pode defender-se com plausibilidade que mesmo uma regra de total egoísmo não tenha a possibilidade de ser adoptada por todos os seres racionais - que exista na natureza das coisas um qualquer obstáculo insuperável à sua adopção. Para dar algum significado ao princípio kantiano, o sentido que lhe é conferido tem de ser que devemos moldar a nossa conduta por uma regra que todos os seres racionais pudessem adoptar com benefício para o seu interesse colectivo.
Racapitulando: a ideia de justiça supõe duas coisas; uma regra de conduta, e um sentimento que sancione a regra. Devemos supor que a primeira é comum a toda a humanidade, e destinada ao seu bem. A outra (o sentimento) é um desejo de que aqueles que infringem a regra possam ser castigados. Também está incluída, adicionalmente, a concepção de uma pessoa concreta que sofre em consequência da infracção; cujos direitos (para usar a expressão adequada ao caso) são violadas por essa infracção. E parece-me que o sentimento de justiça é o desejo animal de repelir ou retaliar um mal ou dano que nos é feito, ou é feito a alguém por quem sentimos empatia, alargado de maneira a incluir todas as pessoas, por meio da capacidade humana de empatia alargada, e a concepção humana de interesse próprio inteligente. Destes últimos elementos deriva o sentimento a sua moralidade; dos anteriores, a sua peculiar força, e energia de auto-afirmação.»

John Stuart Mill, Utilitarismo

sábado, 29 de outubro de 2011

Mario Biondi & Duke Orkestra Live - "Close to You"

Amor

«Haverá que amar o género humano na sua totalidade ou é ele um objecto que se deve considerar com / desdém, ao qual sem dúvida (para não se tornar misantropo) se deseja todo o bem, mas nunca contudo se deve esperar nele, por conseguinte, será preciso antes desviar dele os olhos? - A resposta a esta pergunta funda-se na réplica que se der a uma outra: há na natureza humana disposições a partir das quais se pode inferir que a espécie progredirá sempre em direcção ao melhor, e que o mal dos tempos presentes e passados desaparecerá no bem das épocas futuras? Pois, se assim for, podemos amar a espécie, pelo menos na sua constante aproximação do bem; caso contrário, deveríamos votar-lhe o ódio ou o desprezo; em contrapartida,  a afectação de um universal amor dos homens (que seria então, quando muito, apenas um amor de benevolência, não de complacência), pode dizer o que quiser. Com efeito, ao que é e permanece mau, sobretudo na violação mútua premeditada dos direitos mais / sagrados do homem, não é possível - mesmo com o maior esforço por em si se obrigar ao amor - evitar o ódio, não justamente para fazer mal aos homens, mas para lidar o menos possível com eles.»

Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos

Axelle Red-Ce matin

"Noivado"

«Enquanto durou o "noivado" de Ema com Osório, houve um período que Carlos não achou ser o pior da sua vida. Ele dormia muito, parecia que o sono o protegia duma realidade que podia ser fatal. Deitava-se praticamente vestido, por respeito ao corpo que a repelia ou, o que é pior, o ignorava. Ema desenvolveu um estilo fantástico, que lhe grangeava muitos admiradores; mas logo estancavam, receosos de irem muito além com uma mulher inteligente e cujo desequilíbrio parecia uma forma de má consciência. Não era. Ema via que o marido sofria, preferia que ele a deixasse e levasse com ele as filhas. Mas ele afectava não dar por nada e depositava em Pedro Dossém, como dantes em Pedro Lumiares, uma confiança tão absoluta que roçava pelo ridículo. Dizia que os seus afazeres não lhe permitiam dar a Ema o género de vida turbulenta que ela queria ter; e mostrava-se grato por ela dispor de acompanhantes de boa índole e moral intocável como Pedro Dossém, cuja mulher, uma inglesa desportiva, tomava o amor conjugal como uma partida de ténis, às vezes de pares. De resto, ela era golfista muito reputada.
Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha dourada que mais parecia um altar barroco. Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento de uma comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.»

Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Echo & the Bunnymen - Nothing Lasts Forever

Será a esperança possível?

E contudo, uma montanha que cai some-se
E a rocha se desloca do seu lugar;
As pedras, as águas as empurram,
E o seu fluxo inunda o pó da terra;
Assim, a esperança do humano, tu a fazes perecer.
Tu o arrasas para sempre, e ele desaparece,
Tu mudas a sua face e tu o [re]envias.
Eles são glorificados, os seus filhos?, e ele não o sabe;
E eles são afligidos?, e ele não discerne.
Mas a sua carne está dolorida sobre ele,
E a sua alma sobre ele lamenta enlutada.


Job, 14, 18-22

Esta última estrofe do discurso de Job retoma o tema do vv. 7-12: a descrição da caducidade do homem. O sonho que ele acaba de ter imaginando a possibilidade de uma esperança vem embater contra a dura realidade: todas as criaturas são frágeis, mesmo as mais resistentes. Quatro comparações sublinham esta fraqueza: a rocha que se esboroa, a pedra gasta pela água, o rochedo que se desloca, as terras que desabam com uma chuvada. Alguns exegetas pensam que estas imagens ilustram antes que a ideia de Deus procura aniquilar a esperança da sua criatura como as intempéries deslocam os terrenos e os rochedos. Seja como for, todas as aspirações humanas se detêm, ao fim de contas, na parede irrevogável da morte (cf. Ecl 9, 5-6).
Job esforça~se em vão por fazer uma representação da existência dos mortos. Ele percebe bem que a morte não significa um regresso ao nada, mas ela parece abolir as relações interpessoais. É interessante em todo o caso esta lembrança de que o defunto gostaria de saber dos outros, e especialmente dos seus filhos, mas que ele julga recusado àquele que morre; só lhe resta o sentimento do seu próprio sofrimento.»

Jean Radermakers, Deus, Job e a Sabedoria

The Editors "An End Has A Start"

Influência

«Tem de se carregar o fardo da influência se se quiser alcançar uma originalidade digna de nota, e fazê-la surgir dentro da riqueza da tradição literária ocidental. A tradição não é só uma passagem de testemunho ou um amistoso processo de transmissão. Ela é também uma disputa entre o génio passado e a aspiração presente, em que o prémio é a sobrevivência literária ou a inclusão canónica. Essa disputa não pode ser resolvida através  de preocupações sociais, ou pelo juízo crítico de qualquer geração de idealistas impacientes, ou por marxistas proclamando «Deixem os mortos enterrar os mortos», ou por sofistas que procuram substituir o Cânone pela biblioteca e o espírito de discernimento pelo arquivo. Poemas, histórias, romances e peças, todos surgem como resposta a poemas, histórias, romances e peças anteriores, e essa resposta está dependente de actos de leitura e de interpretação levados a cabo pelos escritores posteriores, actos esses que são idênticos às novas obras.

Harold Bloom, O Cânone Ocidental

M83 'Midnight City' Official video

Anexo

«Fosse Portugal uma Grécia, que Oliveira Martins seria um Tucídides e Fernão Lopes um Heródoto. E porque não há-de ser Portugal uma Grécia, embora bastante arcaica, ou a da caverna dos leões... desses leões que descobriram e conquistaram as terras desconhecidas? Se a Grécia foi uma espécie de sublime cristalização balcânica, um ponto luminoso numa confusão de povos que se perdem, para as bandas do Norte, em geladas estepes infinitas, também Portugal foi uma definição ocidental e da confusa Ibéria ou Balcãs do Ocidente, não espraiada ou ilimitada, mas definida como um bloco a sair do mar, apenas ligado à terra firma por um processo isolador ou montanhoso: a maior confusão étnica dentro da mais nítida definição geográfica.
Os Gregos, como o Lusíadas, foram navegadores e colonizadores. Ainda existe uma nova Tróia, em frente de Setúbal, numa paisagem que lembra a Helénia. E ainda possuímos belas estátuas actuais de carne e osso de antigas mulheres gregas em algumas praias. Temos um Partenão nos Jerónimos, uma deusa Minerva em Coimbra, que ostenta o título de Lusa Atenas, com tão alta prosápia como a torre da Universidade, onde floresce a filosofia medieva, vulgo Teologia. A deusa da Ciência está sobre a cátedra de um lente ou de uma veneranda cabeça catedrática e segura uma esfera de mármore nas mãos, o que inspirou a seguinte quadra ao nosso Afonso Vieira:

Se o pai dos deuses consente,
Deixa cair essa bola
Sobre a cabeça do lente.

Teixeira de Pascoaes, Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita

sábado, 22 de outubro de 2011

Bizet - Les Pêcheurs de Perles: Au fond du temple saint (Vargas/Tézier).

A gracious spirit

«A gracious spirit o'er this earth presides,
And o'er the heart of man; invisibly
It comes, to works of unreproved delight,
And tendency benign, directing those
Who care not, know not, think not, what they do.
Tha tales that charm away the wakeful night
In Araby, romances; legends penned
For solace by dim light of monkish lamps;
Fictions, for ladies of their love, devised
By youthful squires; adventures endless, spun
By the dismantled warrior in old age,
Out of the bowels of those very schemes
In which his youth did first extravagate;
These spread like day, and something in the shape
Of these will live till man shall be no more.
Dumb yearnings, hidden appetites, are ours,
And "they must" have their food. Our childhood sits,
Our simple childhood, sits upon a throne
That hath more power than all the elements.
I guess not what this tells of Being past,
Nor what it augurs of the life to come;
But so it is; and, in that dubious hour -
That twilight - when we first begin to see
This dawning earth, to recognise, expect,
And, in the long probation that ensues,
The time of trial, ere we learn to live
In reconcilement with  our stinted powers;
To endure this state of meagre vassalage,
Unwilling to forego, confess, submit,
Uneasy and unsettled, yoke-fellows
To custom, mettlesome, and not yet tamed
And humbled down - oh! then we feel, we feel,
We know where we have friends. Ye dreamers, then,
Forgers of daring tales! we bless you then,
Impostors, drivellers, dotards, as the ape
Philosophy will call you: "tehn" we feel
With what, and how great might ye are in league,
Who make our wish, our power, our thought a deed,
An empire, a possession, - ye whom time
And seasons serve; all Faculties to whom
Earth crouches, the elements are potter's clay,
Space like a heaven filled up with northern lights,
Here, nowhere, there, and everywhere at once.»

William Wordsworth, The Prelude or, Growth of a Poet's Mind. An Autobiographical Poem

Jean Baptiste LULLY: TE DEUM (3)

Brise Marine

La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux!
Rien, ni lex vieux jardins reflétés par les yeux!
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe
Ô nuits! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lève l'ancre pour une exotique nature!
Un Ennui désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils ceux que le vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts ni fertiles ilots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!

Stéphane Mallarmé

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Morrissey Everyday Is Like Sunday Live

Mundo

«O mundo desconhecido poderá estar feito de modo a dar-nos o gosto do mundo daqui, a não ser mais do que uma forma inferior e talvez estúpida de existência;
O outro mundo, indiferente aos nossos desejos - que nele nunca encontrariam qualquer satisfação - poderá fazer parte da massa de coisas que nos tornam possível o mundo daqui, o qual, por ser conhecido, seria um meio de tornar-nos felizes;
O mundo verdadeiro - e quem nos diz que o mundo aparente há-de ter menos valor do que o mundo verdadeiro! Será que o nosso instinto não contradiz um tal juízo? Não constrói o homem, incessantemente, um mundo imaginário por que quer ter um mundo melhor do que a realidade? Tanto mais que nada nos leva a pensar que o nosso mundo não é o mundo verdadeiro... À primeira vista, o outro mundo é que será aparente (de facto, os gregos imaginaram um reino das sombras, uma existência aparente ao lado duma existência verdadeira).
Enfim: o que é que nos dará o direito de estabelecer graus de realidade? É que não se trata da existência dum mundo desconhecido, mas da nossa necessidade de saber alguma coisa dum mundo desconhecido.
O outro mundo... o mundo desconhecido... Pois seja: mas, dizer o mundo verdadeiro, é dizer que sabemos alguma coisa dele: o contrário da hipótese dum mundo x.
Em suma: o mundo x poderá ser, em todos os sentido, x mais aborrecido, mais desumano e mais indigno do que o mundo daqui. Diferentemente seria se afirmássemos que há o número x de mundos; ou seja, que há todos os mundos possíveis em nosso redor. O que jamais foi afirmado.
Problema: por que é que a representação de outro mundo conclui sempre pela desvantagem, ou pelo menos pela crítica, do mundo daqui? O que indicará isso?
Assim, um povo ufano, de vida ascendente, pensa que qualquer outra maneira de ser será inferior, de menor valia; o mundo estranho, desconhecido, é considerado como inimigo e oponente; não há, para com o estrangeiro, nem curiosidade nem aversão. Um qualquer povo nunca nunca admitiria que um outro povo fosse o povo verdadeiro. Para que uma tal distinção fosse possível, seria porém necessário tomar o mundo daqui por aparente e o outro por verdadeiro - o que é sintomático.
Focos que originaram a ideia de outro mundo:
Os filósofos, ao inventarem um mundo de razão, onde a razão e as funções lógicas estão adequadas ao mundo verdadeiro;
Os homens religiosos, que inventaram um mundo divino, donde deriva um mundo desvirtuado, contranatura;
Os homens morais, que imaginam um mundo livre, donde deriva o mundo bom, perfeito, justo, santo.
Ponto comum destes três focos: erro psicológico, confusões fisiológicas.
O outro mundo, tal como efectivamente aparece na história, é caracterizado por quais atributos? Pelos estigmas de pré-juízos filosóficos, religiosos e morais. O outro modo, que resulta desses factos, é sinónimo do não-viver, da vontade de não viver. Verdadeiramente, foi a fraqueza de viver e não o instinto vital que criou o outro mundo.
Em consequência: a filosofia, a religião, a moral são sintomas de decadência.»

Friedrich Nietzsche, A Vontade de Poder, o Niilismo europeu 

Gloria : Westminster Cathedral Choir

Bosques

«Ao entrarmos no bosque da ficção, espera-se que assinemos um pacto ficcional com o autor e estejamos dispostos a aceitar, por exemplo, que os lobos falem; mas quando a menina do Capuchinho Vermelho é devorada pelo lobo, pensamos logo que morreu (convicção esta vital para o extraordinário prazer que o leitor retirará da sua ressurreição). Imaginamos o lobo peludo e de orelhas pontiagudas e fitas, mais ou menos como os que encontramos nos bosques verdadeiros, e parece-nos natural que o Capuchinho Vermelho se comporte como uma menina e mãe dela como uma mulher adulta, preocupada e responsável. Porquê? Porque é isso que acontece no mundo da nossa experiência, um mundo a que por ora, e sem demasiados compromissos ontológicos, chamaremos mundo real.
O que digo pode parecer muito óbvio, mas deixa de o ser se nos agarrarmos ao nosso dogma da suspensão da incredulidade. Parece que quando lemos uma obra de ficção suspendemos a nossa incredulidade a respeito de umas coisas, mas não de outras. E como a fronteira entre aquilo em que devemos acreditar e aquilo em que não devemos acreditar é muito ambígua (como veremos), como podemos condenar o pobre Vítor Manuel III? Se ele apenas devesse admirar os elementos estéticos do quadro (as cores, a qualidade da perspectiva), nunca deveria ter perguntado quantos habitantes tinha a aldeia. Mas se entrou no quadro, como nós entramos num mundo ficcional, e se imaginou a deambular por aquelas colinas, por que não perguntar-se quem encontraria na aldeia e se por acaso não haveria lá uma estalagem tranquila? Se o quadro era, como imagino, realista, porquê pensar que a aldeia estivesse desabitada, ou assolada por pesadelos, à la Lovercreft? Aqui reside o fascínio de toda a ficção, verbal ou visual: encerra-nos dentro dos limites do seu mundo e induz-nos, de uma maneira ou de outra, a levá-lo a sério.»

Umberto Eco, «Os Bosques Possíveis», in Seis passeios nos bosques da ficção 

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Dexter Gordon in a sentimental mood.wmv

O que importa

Dizem-me que devo estar atento e que o que importa é aquilo a que não dou atenção.
Que importa a tralha que nos tolda os dias? - pergunto. Que importa discutir o acessório?

Suspensão

Até que ponto o facto de alguém se suspender de si pode constituir uma aproximação àquilo que, de algum modo, acontece quando Fernando Pessoa estabelece a existência de dramatis personae?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Henry Purcell - The Tempest / Air

Like as the waves make towards the pebbled shore,

Like as the waves make towards the pebbled shore,
So do our minutes hasten to their end,
Each changing place with that which goes before,
In sequent toil all forwards do contend.
Nativity, once in the main of light,
Crawls to maturity; whrewith being crowned
Crooked eclipses 'gainst his glory fight,
And time, that gave, doth now his gift confound.
Time doth transfix the flourish set on youth,
And delves the parallels in beauty's brow;
Feeds on the rarities of nature's truth,
And nothing stands but for his scythe to mow.
    And yet to times in hope my verse shall stand,
    Praising thy worth, despite his cruel hand.

William Shakespeare

sábado, 15 de outubro de 2011

"Flow my tears" by John Dowland

XVII. Ho Letto...

Appunti di Taccuino

«Ho letto una descrizione tristissima, disperata, delle condizioni d'Italia. Una volta, letture di questa sorta mi davano mezze giornate, giornate o settimane di umor nero. Ora non più: esperienza, scienza e sdegno morale mi hanno, verso di esse, fortificato. Esperienza: perché odo ormai da alcuni decennî, di tratto in tratto, qualcuno o parecchi annunziare e dimostrare che l'Italia sta per disgregarsi politicamente o fallire economicamente o dissolversi nella corruttela o esser trascinata in una guerra, che sará la sua fine come Stato e come Nazione. E nessuno dei disastri profetati à mai accaduto, e molti malanni sono spariti (in cambio, è vero, ne è sorto qualcuno nuovo, ma ciò nell'ordine di natura); e, in complesso, non si sta peggio, e si può dire persino che si sia progredito. Scienza: perché ho appreso che quelle descrizioni pessimistiche debbono di necessità essere esagerate e perciò false, essendo metafisicamente impossibile che una società, anche per un istante, si regga sull'irrazionalità e sul male; e se alcuno non riesce a scorgere la legge razionale di una data configurazione sociale, e se scorge soltanto il male o considera come male la fenomenologia stessa del bene, dia la colpa a se medesimo, che ha mente astratta e non concreta, meccanica e non organica (epperò impotente a comprendere un organismo), analitica, ma di un'analisi senza sintesi. E, infine, sdegno morale; giacché considerare spregiudicatamente e affisare coraggiosamente i duri tratti della realtà per dominarla e operare, è da uomo; ma stare a descrivere il sognato male, così, per descriverlo e per ammazzare il tempo, o peggio ancora per compiacersi di fronte ad esso della propria non meno sognata superiorità, o peggio di peggio, per trarne giustificazione ad accomodarvisi (i pessimisti sono di solito accomodantisti), è da pettegolo, da vanesio e da ciacco. Quella maldicenza è propria della gente volgare, del borghesuccio ozioso; e non v'ha circolo di perditempo in cui non si passino a rassegna gli orrori della presente società e non si presagisca il finimondo. In verità, a petto di cotesti moralisti da caffé o da farmacia (e degli scrittori che ad essi corrispondono), non c'è canaglia o imbroglione o ladruncolo, che non s'irraggi di umana simpatia; perché la canaglia, l'imbroglione e il ladro operano, s'ingegnano, si distreggiano e rischiano la pelle o la libertà, e spesso dal male che essi fanno nasce un bene inaspettato; laddove quei moralisti oziano, e non possono ingenerare altro bene che lo sdegno e la nausea, che suscitano, in coloro in cui la suscitano. - Ma da quando in qua non è più lecito effondere la propria tristezza in presenza dei mali del mondo? - Sí, che è lecito, ma al poeta, il quale, come disse un poeta-filosofo, «con la forma distrugge la materia», ossia la rende ideale; non già al'uomo pratico, al quale condannare un fatto non è lecito senza insieme aiutare il sorgere di un altro fatto che sostituisca il primo (che è condannato giustamente soltanto quando è sostituibile); e chi condanna a questo modo, non si può dire che si compiaccia nel chiacchierare ozioso, perché egli, come può, opera, e dunque, se opera, non è pessimista, ma ottimista.»

Benedetto Croce, Cultura e Vita Morale

John Cage - 4'33" (BBC)

77

«É, porém, um facto curioso que a religião e a ciência têm a mesma base - a intuição determinista. A noção de lei é fundamental na ciência, e na mentalidade científica; sem que haja uma noção de lei, nem pode haver ciência, nem quem busque fazer ciência.
Mas esta mesma noção de determinismo é que é o fundamento da religião; porque a religião não passa, na essência, do reconhecimento de que a vida, a acção, tudo quanto somos e representamos, não tem origem ou explicação em nós mesmos, mas está nas mãos de um poder ou poderes desconhecidos.

Paralelamente, porém, ao reconhecimento da existência de uma força superior a ele, o homem nota, também, que a acção dessa força, no que se refere às ideias morais e outras (que ele tira da sua vida social), é absurda por vezes, outras vezes injusta, frequentemente inexplicável. O que acontece é por vezes imoral; morre o justo ante o pecador, e a astúcia vale mais que a honestidade muitas vezes. Mas isto acontece umas vezes, e outras o contrário; difícil é determinar qual a lei oculta a que tudo isso obedece. Por isso a religião espontânea da humanidade reconhece que, como há motivos desencontrados e absurdos provindos da complexidade, na vida, assim deve haver, governando-nos, não só uma presença, mas várias; e os mais lógicos entre os homens reconhecem que essas várias presenças, que nos regem, como não são limitadas na sua regência e contudo produzem por vezes efeitos imorais para nós, e por certo injustos frequentemente, ou têm uma moral diferente da nossa, ou moral nenhuma, ou são, como nós, susceptíveis de caprichos e de volubilidades. Tal a doutrina pagã, que, completada, reconhece, porém, mais alguma coisa. Assim como nós agimos e supomos que produzimos acção, mas, pensando bem, reparamos na nossa servitude, e que a acção que agimos não é nossa mas produzida, assim chegamos a crer que essa acção das presenças superiores não emane exclusivamente deles, mas de qualquer outra presença, que os governe. E assim a lógica do paganismo concebe, e bem, que o Destino se oculta por detrás, e interiormente, à acção dos homens e dos deuses.

A ideia cristã, de que há um Deus supremo moralmente caracterizável, e presenças intermédias de várias espécies, primordialmente os anjos, é menos lógica que a ideia pagã. Pondo acima de tudo (no lugar de Deus no cristismo) o Destino, o pagão reconhecia que o que temos que ter por superior a tudo é a Lei, mas a Lei nem moral nem imoral, nem caracterizável  nem não,simples força a que se não pode resistir, compulsão contra a qual não há revolta e da qual não há apelo.»

Ricardo Reis, Prosa

Pat Metheny - Into The Dream

Littérature

«La littérature, disait Sainte-Beuve, n'est pas pour moi distincte ou, du moins, séparable du reste de l'homme et de l'organization... On ne saurait s'y prendre de trop de façons et de trop de bouts pour connaître un homme, c'est-à-dire autre chose qu'un pur esprit. Tant qu'on ne s'est pas adressé sur un auteur un certain nombre de questions et qu'on n'y a pas répondu, ne fût-ce que pour soi seul et tout bas, on n'est pas sûr de le tenir tout entier, quand même ces questions sembleraient les plus étrangères à la nature de ses écrits: Que pensait-il de le religion? Comment était-il affecté du spectacle de la nature? Comment se comportait-il sur l'article des femmes, sur l'article de l'argent? Était-il riche, pauvre; quel était son régime, se manière de vivre journalière? Quel était son vice ou son faible? Aucune réponse à ces questions n'est indifférent pour juger l'auteur d'un livre et le livre lui-même, si ce livre n'est pas un traité de géométrie pure, si c'est surtout un ouvrage littéraire, c'est-à-dire où il entre de tout.»

Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Bill Evans - Midnight Mood

Apolo Musageta

Eras o primeiro dia inteiro e puro
Banhando os horizontes de louvor.
Eras o espírito a falar em cada linha,
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços,
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar,
Eras o conhecimento pelo amor.

Sonho e presença
Duma vida florindo
Possuída e suspensa.

Eras a medida suprema, o cânone eterno,
Erguido puro, perfeito, harmonioso,
No coração da vida e, para além da vida,
No coração dos ritmos secretos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Stan Getz and Chet Baker "Just Friends" 1983

Écloga Perdida

À beira do meu verso não há flores,
Nem verdes ramos nem canaviais,
Nem vergônteas esguias como ais
Ondulam com os ventos voadores.

Ninguém passa também nos areais
Desertos. Aves, nuvens, leves cores:
- Nem sequer esse fáceis pormenores
De soluços monótonos e iguais.

Se a tarde empalidece de tristeza
E poisa magoada na aspereza
Dos montes, o regato ganha vida,

E estende para a noite enorme e langue
No grito solitário do meu sangue
O sonho de uma écloga perdida.

Bernardim Ribeiro

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Jason Moran Trio - Body and soul / Ringing my phone

Crítico

«Para um crítico, o primeiro requisito é o temperamento, um temperamento finamente susceptível à beleza e às várias impressões que a beleza nos transmite. Sob que condições, e por que meios, este temperamento é engendrado na raça ou no indivíduo, não discutiremos de momento. Basta apenas notar que existe, e que há em nós, um sentido de beleza, distinto dos outros sentidos e acima deles, distinto da razão, mas de uma qualidade mais nobre, distinto da alma, mas de igual valor, um sentido que leva alguns a criar, e outro, espíritos mais finos, segundo me parece, unicamente a contemplar. Mas para se purificar e tornar perfeito, este sentido exige um determinado tipo de ambiente refinado. Sem isso, morre à míngua ou embota-se. Lembras-te decerto daquele passo em que Platão descreve como um jovem grego deve ser educado, e com que insistência ele refere a importância do que o circunda, dizendo-nos como o rapaz deve ser educado no meio de vistas e sons amoráveis, de modo a que a beleza das coisas materiais possa reparar a sua alma para a recepção da beleza que é espiritual. Insensivelmente, e sem saber o que o impele, desenvolverá aquele verdadeiro amor da beleza que é, como Platão nunca se cansa de nos lembrar, o verdadeiro fim da educação. De modo lento e gradual, criar-se-á nele um temperamento que o levará, simples e naturalmente, a escolher o bem em detrimento do mal, e, rejeitando o que é vulgar e discordante, a seguir por meio de um gosto fino e instintivo tudo aquilo que é dotado de graça, encanto e beleza. Por fim, em devida altura, este gosto tornar-se-á crítico e consciente de si, embora, a princípio, exista unicamente como um instinto cultivado, e «aquele que tiver recebido esta cultura verdadeira do homem interior verá, com visão clara e segura, as faltas e omissões na arte e na natureza, e, com um gosto incapaz de errar, enquanto elogia e acha prazer no que é bom e o recebe na sua alma, e assim se torna bom e nobre, também censurará e odiará o mal, mesmo nos seus dias de juventude, e ainda antes de saber por que o faz»; assim, quando, mais tarde, o espírito crítico e consciente de si se desenvolver nele, «reconhecê-lo-á e saudá-lo-á como um amigo a quem a sua educação tornou familiar». Será escusado dizer Ernest, como ficámos aquém, em Inglaterra, deste ideal, e posso bem imaginar o sorriso que iluminaria a cara luzidia do filisteu se alguém se lembrasse de lhe sugerir que o verdadeiro fim da educação era o amor da beleza, e que os métodos por meio dos quais a educação se faz são o desenvolvimento do temperamento, a correcção do gosto e a criação do espírito crítico.»

Oscar Wilde, «O Crítico como Artista», in Intenções, quatro ensaios sobre estética

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Erik Satie Gymnopédie No. 1 - Tzvi Erez, piano

L'errore radicale

«La legge della connessione esprime in generale la supremazia del necessario nella struttura del logos. Questa supremazia, che viene consolidata e ribadita tirannicamente dal vincolo deduttivo, raccoglie agglutinandoli assieme glioggetti astratti già costituiti, cosicché l'essere e la verità che da questi conseguivano vanno perdendo, nel movimento discendente, il primitivo carattere di istantaneità, e il loro richiamo all'immediatezza risulta sempre più sbiadito e sfocato. L'essere e la verità diventano "scientifici", strumenti di una costruzione - sopraffatti come sono dal necessario - e semplici designazioni di un oggetto astratto.
In questa tendenza c'è un elemento degenerativo. La spinta del necessario porta a falsificare la natura dell'espressione. Già si è accennato all'illusorietà connessa al trasferimento della necessità discendente entro la sfera delle espressioni prime. Tutto à apparenza, ma l'illusione è apparenza nell'apparenza. Il controriflusso è invero un tentativo di duplicazione dello slancio primario dell'espressione: attraverso la doppia inversione del riflusso edella deduzione, quest'ultima si trova a ripercorrere la stessa direzione delle espressioni prime. Ma tale parvenza di vita sorgiva opera illusoriamente, poiché la comistione di giuoco e violenza à sostituita dal gioco incontrastato della necessità.
Non un errore dell'individuo, che appartiene al logos spurio, bensì un errore radicale è alla base di questa illusione. L'oggetto aggregato, che era stato prodotto da quella commistione, in cui andava prevalendo la necessità, viene poi, viene poi riconosciuto in modo sbrigativo, nella costruzione deduttiva, come formato esclusivamente dalla necessità. E dove l'errore risulta più deformante, e più indecifrabile, è nel tessuto delle espressione prime e dei loro ricordi diretti; qui l'inversione graduale del nesso della causalità trasferisce all'indietro - interpolando una preesistenza sostitutiva - gli oggetti integrati, o addirittura gli universali e gli oggetti composti: Così il ricordo dell'attimo è interpretato, ricostruito come un oggetto necessario: tale è l'opera dell'erore radicale. Il mondo del divenire, della storia, dell'azione si fonda su questo errore, e perciò lo chiamo illusorio. Difatti l'attimo esce da un nesso espressivo in cui giuoco e violenza sono inscindiblimente intrecciati, e il ricordo dell'attimo da uno in cui contingente e necessario sono inviluppati in un'identica commistione: sostituirli con oggetti prodotti dal vincolo della necessità è dunque una falsificazione radicale. Eppure questa è nella natura del logos: ogni espressione viene spogliata del suo elemento  di giuoco, ovunque si realizza una fagocitazione del contingente per opera del necessario. Prima che si giunga alle rappresentazioni astratte, nel paesaggio tra ciò che viene espresso e la sua espressione è inafferrabile le sfumatura manifestante di giuoco e di violenza, e certo non c'è ancora nessuna decisione a favore dell'uno o dell'altra: questa incertezza segreta è il fremito della vita.»

Giorgio Colli, Filosofia dell'espressione

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Antony And The Johnsons - U Are My Sister - Sweden Feb. 2006

Cabra-cega

«Agora a pergunta era tão clara que eu não achei uma sombra para me esconder. De outras vezes, outra gente me perguntara o mesmo. E nunca soube responder. Falavam-me de fora, de outro mundo, com uma linguagem diferente. E assim, as nossas ideias jogavam à cabra-cega. Eu próprio, quando queria entender-me, espreitando-me donde me não suspeitasse, não tinha razões talhadas à medida do meu sonho. Os princípios do senso, da justiça, talvez tivessem envelhecido e não pudessem acompanhar o meu anseio. Só metido dentro de mim eu me compreendo todo e sem razões. Hei-de um dia tombar e arrefecer. Talvez então seja possível a outros ler em rigor o que se imobilizou da minha agitação. Até lá, é difícil. Qualquer coisa me está sempre forçando os limites, mesmo da regra que julgo dar-me. Um vento largo ergueu-se não sei donde e arrebatou-me. Lembra-me bem como tudo aconteceu. Mas quando penso no que eu fui, não me parece que tenha acontecido nada de extraordinário. É como se eu tivesse já nascido para isso. Meu pai às vezes dizia: «Hoje vou ter sorte»; ou: «Hoje vai-me acontecer uma desgraça.» O mais difícil era convencer-se de que seria assim. Porque depois, durante o dia, só tinha de andar atento para achar a desgraça com a sorte que profetizara. Mas nunca fui capaz de entender que arcanjos da vida o faziam acreditar assim nos anúncios do seu destino. Havia sol ou chuva no céu, nem sempre o comer estava pronto a horas, às vezes o filho mais novo chorava sem razões adultas, ou qualquer coisa parecida. Mas é difícil pensar que factos desses decidissem das certezas de meu pai.»

Vergílio Ferreira, «Adeus», in Contos  

domingo, 9 de outubro de 2011

Etienne Daho - 2. Paris Le Flore (HD) Live

Murmure

«Est-ce moi? Ce grand homme nu, qui s'étonne de vivre, et ses mains le parcourent, le poitrail, les muscles, l'arcature: quel âge as-tu, garçon? La trentaine, un peu plus. L'âge de rencontrer Murmure. Dans ce temps-lá, je me dispersais comme un feu, d'une canne ou du pied, pour voir les dernières étincelles ranimer les cendres, éparpiller l'éclat. Comme je me ressemble encore! Est-ce que j'ai rêvé tout le reste, après, trois semaines, trois heures, trente ans... Tout n'aurait donc été, nous et le monde, qu'un long rêve? Je suis celui des premiers jours, je ne t'appelle pas encore Murmure, et tu dors sans savoir quil est advenu toute cette histoire des années... je suis celui des premiers jours, et tout ce que j'ai rêvé, c'est comme dans l'homme qui tombe à mourir, cette chute de la vie à rebours, le vivre revécu, rien n'a eu lieu, c'est toujours la première nuit de nous, la première fois que je me réveille et tu dors. Je me réveille, ce grand homme maigre et violent, sa jeunesse, ayant perdu dans tes bras sa folie, tout à coup l'avenir à sa taille, et frémissant de ta présence, regardant la nuit pour la première fois, et le monde obscur ainsi pour la première fois. Ah tu es là, tu respires. Écoute-moi, je suis peut-être un autre. Dans quel instant d'aimer sommes-nous soudain surpris? Qu'une chose, une seule, ait varié dans l'ombre, et rien du reste n'est plus notre décor éveillé, il faut tout remettre à l'échelle, il suffit sur la chaise d'une étoffe inconnue, une longue robe mauve aux grandes manches fendues, comme on voit je ne sais dans quel Watteau, où les gens s'en vont dans un parc en faisant de grands gestes pâles... il faut remettre à l'échelle d'un taffetas tout ce qu'on pense, et ce qu'on est, et ce qui se passe là-bas sur un lac vaguement encore éclairé...
Je me réveille, et c'est au monde qu'il me faut demander quel âge as-tu?»

Louis Aragon, «Premier conte de la chemise rouge. Murmure», in La Mise à Mort

sábado, 8 de outubro de 2011

Telemann Presto from Concerto for recorder and traverso, TWV 52 e1 - Spinosi

Grote Markt

Vamos sentar-nos.

A vida rasga-se de muitas maneiras.
Sentiu o braço do pai
sem nenhum músculo, a película da pele
e pensou no amigo do colégio que lhe ensinara, no final de
um ano lectivo, a dobrar um casaco

estende-o em cima da cama, do avesso
dobra-o, enquanto fazes com o punho pequena pressão
um ombro recebe o outro ombro
a gola fica direita e segue a lonjura das abas e as mangas, vê,
ficaram dentro. Volta a dobrar

era um embrulho pequeno, brilhava o forro cinzento.
Porque lhe viera à lembrança o braço envelhecido
e a voz de quem o levara a uma primeira e única corrida de
toiros

morrera, mal o toiro saíra da arena
sem que tivesse receado alguma vez esse momento e o casaco
ficou dobrado muitos dias sobre a cama, esmaecida
cinza coloria o verão que me faltava cumprir.

Sentados no enrugado embrulho da Grand Place, ao modo de
quem espera um canto de saco
para partir de viagem, ao modo de um lamento. Do roi d'
espagne e dos Paços que foram do senhor duque de Brabante
desanimados sons lançavam no ar pesado. Tinha

olhos verdes
verde de água parada de nenúfar
água de lago.

João Miguel Fernandes Jorge, Sobre Mármore

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Virginia Astley - A Summer Long Since Apart

There is an Eminence

There is an Eminence - of these our hills
The last that parleys with the setting sun;
We can behold it from our orchard seat;
And, when at evening we pursue our walk
Along the public way, this Peak, so high
Above us, and so distant in its height,
Is visible; and often seems to send
Its own deep quiet to restore our hearts.
The meteors make of it a favourite haunt:
The star of Jove, so beautiful and large
In the mid heavens, is never half so fair
As when he shines above it. "Tis in truth
The loneliest place we have among the clouds.
And she who dwells with me, whom I have loved
With such communion, that no place on earth
Can ever be a solitude to me,
Hath to this lonely Summit given my Name.

William Wordsworth

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Shona Foster - Oh Patience

Aborrecimento

«A capacidade para suportar uma vida mais ou menos monótona deve ser adquirida desde a infância. A este respeito, os pais modernos são bastante censuráveis; proporcionam aos filhos demasiados prazeres passivos, tais como espectáculos e guloseimas, e não compreendem a importância que tem para uma criança um dia ser igual a outro dia, excepto, é claro, nalgumas raras ocasiões. Em geral, os prazeres da infância deveriam ser aqueles que a própria criança descobrisse no seu ambiente por meio de algum esforço e imaginação. Os prazeres que excitam e ao mesmo tempo não implicam qualquer exercício físico, o teatro por exemplo, só lhes seriam facultados muito raramente. A excitação é da mesma natureza dos narcóticos que cada vez se tornam mais exigentes, e a passividade física durante a excitação é contrária ao instinto. Uma criança desenvolve-se melhor quando, tal como uma jovem planta, a deixam tranquila no mesmo solo. Demasiadas viagens, demasiadas variedades de impressões não são boas para as crianças, incapazes de suportar uma monotonia fecunda. Não quero dizer que a monotonia tenha algum mérito em si mesma; quero somente afirmar que algumas coisas boas não são possíveis senão quando há um certo grau de monotonia. Consideremos, por exemplo, o Prelúdio, de Wordsworth. Torna-se evidente a qualquer leitor que tudo o que tem algum valor nos pensamentos e sentimentos de Wordsworth seria absolutamente estranho a um jovem citadino corrompido por uma vida dissipada. Um jovem que tenha algum sério propósito construtivo, suportará voluntariamente uma dose considerável de aborrecimento se julgar que isso lhe pode ser necessário. Mas projectos construtivos não se formam facilmente no cérebro de quem leve uma vida de distracções e dissipações, pois nesse caso os seus pensamentos serão sempre orientados para os prazeres imediatos mais do que para realizações distantes. Por todas estas razões, uma geração incapaz de suportar o aborrecimento será uma geração de homens medíocres, de homens que se divorciaram indevidamente do lento progresso da Natureza, de homens nos quais murcham lentamente todos os impulsos vitais, como se fossem flores cortadas num vaso.»

Bertrand Russell, A Conquista da Felicidade

Vittorio Gassman - Gassman legge il menù

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Drama

«O drama verdadeiro só é pensável enquanto produto do impulso colectivo de todas as artes para a mais imediata comunicação a um público colectivo:  cada modalidade artística singular só consegue abrir-se ao completo entendimento do público colectivo por meio da sua comunicação colectiva com as restantes modalidades artísticas no drama, pois que a intenção de cada modalidade artística singula só se obtém inteiramente no agir conjunto de todas as modalidades artísticas, no qual elas se dão  a entender e se entendem mutuamente.»

Richard Wagner, A Obra de Arte do Futuro 

sábado, 1 de outubro de 2011

PJ Harvey - Good Fortune - live

PJ Harvey, John Parish - Black Hearted Love

Sfogare la colera

«Se sono furioso per una qualche ragione, mi può capitare di colpire la terra o un albero con il mio bastone, ecc. Così facendo però non credo che la colpa sia della terra o che colpirla possa servire a qualcosa. «Sfogo la mia colera». E tutti i riti sono di questa specie. Queste azioni si possono chiamare azioni instintive. - E una spiegazione storica che per esempio affermasse che in tempi passati io o i miei antenati abbiamo creduto che colpire la terra serva a qualcosa sarebbe un imbroglio, perché queste sono ipotesi superflue, che non spiegano niente. Ciò che importa è la somiglianza dell'atto con un atto di punizione, ma più di questa somiglianza non si può constatare.
Se poi colleghiamo un tale fenomeno con un istinto che io stesso possiedo, allora sarà proprio questa la spiegazione desiderata; cioè quella che risolve questa particolare difficoltà. E ogni ricerca ulteriore sulla storia del mio istinto si muoverà d'ora in poi su altri binari.
Non dev'essere stata una ragione da poco, anzi non può essere stata neppure una ragione, quella per cui certe razze umane hanno adorato la quercia, ma semplicemente il fatto che quelle razze e la quercia erano unite in una comunità di vite, e perciò si trovavano vicine non per scelta, ma per essere cresciute insieme, come il cane e la pulce. (Se le pulci sviluppassero un rito, riguraderebbe il cane).»

Ludwig Wittgenstein, Note sul "Ramo d'Oro" di Frazer

Art of Noise - Peter Gunn

Political

«The Nicomachean Ethics - dedicated to Aristotle's son Nicomachus, says Porphyry; edited by him, say others - is the most brilliant set of lecture notes ever written; and just because they are lecture notes, with all the disadvantages of occasional compression or repetition or inaccurate cross-referencing, we can almost hear in them from time to time the tone of Aristotle's spoken voice. It is magisterial and it is unique; but it is also a voice that seeks to be more than merely Aristotle's own. "What do we say on such and such a topic?" is a question that he continuously asks, not "What do I say?" Who is this "we" in whose name he writes? Aristotles takes himself not to be inventing an account of the virtues, but to be articulating an account that is implicit in the thought, utterance and action of an educated Athenian. He seeks to be the rational voice of the best citizens of the best city-state; for he holds that the city-state is the unique political form in whitch alone the virtues of human life can be genuinely and fully exhibited. Thus a philosophical theory of the virtues is a theory whose subject-matter is that pre-philosophical theory already implicit in and presupposed by the best contemporary practice of the virtues. This of course does not entail that practice, and the pre-philosophical theory implicit in practice are normative for philosophy necessarily has a sociological, or as Aristotle would have said, political starting-point.»

Alasdair MacIntyre, After Virtue, a study in moral theory

Handel: O God like youth (Saul)

The New Remorse

The sin was mine; I did not understand.
    So now is music prisoned in her cave,
    Save where some ebbing desultory wave
Frets with its restless whirls this meagre strand.
And in the withered hollow of this land
    Hath Summer dug herself of this land
    That hardly can the leaden willow crave
One silver blossom from keen Winter's hand.

But who is this who cometh by the shore?
(Nay, love, look up and wonder!) Who is this
    Who cometh in dyed garments from South?
It is thy new-found Lord, and he shall kiss
    The yet unravished roses of thy mouth,
And I shall weep and worship, as before.

Oscar Wilde, Poemas