Acerca de mim

A minha foto
Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Divino Sospiro - Bach Cantata BWV 63

La Venexiana Giaches De Wert "Ah dolente partita"

Credo

«Se recito o Credo, ou até se rezo, as palavras que uso não têm para mim o som realista que os adeptos de uma fé concebida metafisicamente pensam dever atribuir-lhe. Assim, se chamo a Deus «pai» carregarei este termo de um conjunto de referências que têm a ver com a minha experiência histórica mas também com a minha biografia e que não ignoram o carácter problemático de atribuir à divindade traços humanos e, para além disso, ligados a um determinado modelo de família. Se penso em todas estas coisas, na verdade, já não sei muito bem o que digo quando recito o Pater Noster. Mas parece-me que também esta desorientação faz parte da minha experiência da fé como resposta à revelação da kenosis. No uso do termo pai permanecerá apenas aquilo que Schleiermacher chamava o puro sentimento da dependência? Provavelmente sim, e de novo é este o núcleo que não penso possa ser objecto de redução e desmistificação; o porquê não o sei, mas a verdade é que todo o discurso sobre a superação da metafísica, que me impede falar do ser como estrutura eterna, me leva a pensar o ser como evento e, portanto, como qualquer coisa que é iniciada, e por uma iniciativa que não é a minha. A historicidade da minha existência é uma consequência, e a emancipação, ou a salvação, ou a redenção, consiste precisamente  em tomar consciência deste carácter eventual do ser que me põe na contingência de entrar activamente na história, e não de contemplar simplesmente de modo passivo as suas leis necessárias. É este, mais uma vez, o sentido da frase «já não vos chamo servos, mas amigos».

Gianni Vattimo, Acreditar em Acreditar

quarta-feira, 30 de março de 2011

Roland De Lassus - Missa "Bell'Amfitrit'Altera" (3/3).

Vozes apanhadas do chão na Igreja de San Miniato al Monte

1.

Eu nunca gostei de portas, sempre as vi como
um grosseiro despotismo. Não percebia por
que razão davam passagem a uns e outros não.
Rebelei-me contra elas, tornei-me arrombador.
Decidido a contestar os seus desígnios, passei
os melhores anos da minha juventude a estudar
o idioma das fechaduras. Aos poucos, alcancei
uma secreta mestria: nenhuma resistia à sedução
dos meus arames. As portas franqueadas, e não
o que atrás delas se defende, procurava. Poucas
vezes roubei. Esta alegria me bastava - introduzir
desordem na composta segurança duma casa.
Agora que penso nisso, acho que havia algo
de bárbaro nessa minha obsessão por destruir
a ilusória placidez das fortalezas, os escudos
de propriedade, da suficiência. Porta atrás
de porta, a minha vida passou. Até chegar aqui,
a este lugar indistinto. Também nele há uma porta.
Não me seria difícil arrombá-la. Não fosse dar-se
o caso (e esse é o castigo da minha soberba)
de não saber se estou no céu ou no inferno.

José Miguel Silva

segunda-feira, 28 de março de 2011

Sibelius: Andante Festivo

Os Cavalos de Aquiles

Assim que viram Pátrocolo morto,
tão denodado, e forte, e jovem no durar,
os cavalos de Aquiles começaram a chorar;
a sua imortal natureza se indignava
com esta obra de morte que contemplava.
Sacudiam as suas cabeças e as longas crinas moviam,
batiam na terra com as suas patas e carpiam
Pátrocolo que sentiam sem alma - exterminado -
uma carne agora vil - seu espírito dissipado -
indefeso - a respiração parada -
da vida devolvido ao grande Nada.

Zeus viu as lágrimas dos mortais
cavalos e entristeceu. «No casamento de Peleu»
disse «não devia assim sem pensar ter feito eu;
antes meus cavalos vos vos não tivéssemos oferecido
infelizes! Que procuráveis lá entre o caído
no brinquedo do destino que é a mísera humanidade.
Vós a que nem a morte arma cilada, nem a muita idade
precárias calamidades vos tiranizam. Nas suas provações também
vos envolvem os humanos». As suas lágrimas porém
pela perpétua calamidade da morte
derramam os dois animais de nobre porte.

Konstandinos Kavafis

domingo, 27 de março de 2011

Handel - Sarabande

Survivre

«Le verbe «survivre» recèle une ambiguité irréductible. Il suppose le renvoi à quelque chose ou à quelqu'un auquel on survivrait. Le latin supervivo - comme son équivalent superstes sum - se construit en ce sens avec le datif, qui indique «ce à quoi» l'on survit. Mais, dès le départ, s'agissant des êtres humains, le verbe admet une forme réflexive, donc la curieuse idée d'une survie à soi-même et à sa propre vie, où celui qui survit et celui auquel il survit ne font qu'un. Si Pline peut ainsi dire d'un personnage public: «Il avait survécu trente ans à sa gloire» (triginta annis gloriae suae supervixit), on trouve déjà chez Apulée l'idée d'une véritable existence posthume, d'une vie qui vit en se survivant (etiam mihi ipse supervivens et postumus). Dans le même sens, les auteurs chrétiens peuvent dire du Christ - et de tout chrétien avec lui -, en tant qu'il a survécu à la mort, qu'il est à la fois testateur et héritier (Christus idem testator et haeres, qui morti propriae supervivit), mais encore du pêcheur, en tant que spirituellement mort, qu'il se survit sur terre (animam tuam misera perdidisti, spiritualiter mortua supervivere hic tibi).
Cela suppose qu'en l'homme la vie apporte avec soi une césure, qui peut faire de tout «vivre». En un sens - celui retenu, comme on l'a vu, par Bettelheim -, survivre signifie la pure et simple continuation de la vie nue, par opposition à une vie plus vraie, plus humaine; en un second sens, la survie a une connotation positive - comme chez Des Pres - et concerne celui qui en luttant contre la mort a survécu à l'inhumain.»

Giorgio Agamben, Ce qui reste d'Auschwitz 

sábado, 26 de março de 2011

Recado a um jovem poeta

Continua agreste para o mundo
e conforta-nos com a lucidez
do teu desconforto, nas palavras
de todas as horas, limpas de
hemorragias órficas. O novo Castelo
de Duíno (ou outro qualquer)
é um terceiro andar, sem ascensor,
onde Lou Andreas-Salomé deixou
de velar com elegância
a angústia.

Inês Lourenço

quinta-feira, 24 de março de 2011

Rosa

Um corpo dourado em banho luminoso
esforça-se por esquecer
Existe nesse corpo dourado
uma vontade que considera
Capaz de dominar a mutabilidade das formas.

O corpo dourado
É apenas o corpo
temporariamente dourado.
Nada mais.

O ouro reluz de forma intensa
quando é genuíno. O ouro da vida,
Na sua genuinidade,
não pode ser senão rosa.

A rosa é o modo
como esse corpo se apresenta em ouro,
mesmo na queda
Mesmo diante do precipício.

José Mário Branco - Queixa das almas jovens censuradas

Raquel Tavares - Sofrendo da Alma

26 Novembro de 2000

26 de Novembro de 2000
Estamos em crise. Chegou o momento em que já não se pode esconder aquilo que era evidente há algum tempo. Mas esta crise não é uma crise nova. É uma repetição. No tempo de Cavaco Silva, existiram dois momentos marcantes assinalados por intervenções marcantes do então Primeiro-Ministro. As afirmações “deixem-nos trabalhar” e a assumpção de um oásis inexistente, mostravam naquela altura aquilo de que os políticos não se sabiam ocupar: os problemas concretos das pessoas. Com António Guterres, nos últimos tempos, a ideia de oásis foi transformada na afirmação de que Portugal è um país tranquilo, na periferia de uma Europa agitada. Lá, na Europa, existe agitação social, motivada pelos aumentos dos preços dos combustíveis. Aqui, no nosso cantinho, estamos em paz, porque o nosso guia espiritual não quis arranjar confusões e lembrou-se dos pobrezinhos que andam de carro todos os dias de casa para o emprego. Mais recentemente, inquirido acerca das últimas estimativas de grandes organizações internacionais acerca do insuficiente crescimento da economia, António Guterres apenas respondeu que não se preocupava com essas coisas porque apenas sabia trabalhar pelos interesses de Portugal. Como são sábios os nossos políticos-avestruzes!
 O nosso cantinho está tão arrumadinho que nem sabemos que bem perto de nós existem bandos organizados de neo-nazis que matam diante de cidadãos que os temem e receiam enfrentar. A indiferença è um dos maiores males da condição humana. O seu exercício mais elevado não se manifesta, è cego, surdo e mudo. Ninguém viu, ouviu ou disse. O mal avança e nós contemplamo-lo como se ele existisse dentro uma qualquer residência vigiada. Só que sem vigilantes. Apenas com observadores que se limitam a fazer o nobre trabalho de investigação com base nos modos como homens e mulheres reagem sob a pressão de um qualquer cativeiro.
Comemorou-se ontem o vigésimo quinto aniversário do 25 de Novembro de 1975. Que dizer de uma data que fez emergir os últimos heróis desta nação em delirium tremens? È bom sabermos que alguns ainda estão vivos, que ainda respiram. Mas toda esta energia organizativa não será muito mais fruto de uma necessidade de mostrar como os homens podem ser bons e, por reflexo, sugerir que os políticos, descendentes daqueles homens, também são, pelo menos, bem intencionados? Logo se verá.
O mês que passou mostrou-me um Proust que eu não conhecia e que ainda saboreio. 

quarta-feira, 23 de março de 2011

Doença

«- (...) Lembro-me de intelectuais degradando-se muito depressa, enquanto estivadores ou pessoas habituadas ao trabalho manual resistiam melhor. Não há critério absoluto; os critérios eram outros. Um deles era o peso do corpo: é evidente que um homem como eu, franzino de natureza, que pesava, à chegada ao Lager, quarenta e nove quilos, necessitava de menos calorias do que um homem de oitenta ou noventa quilos; no meu caso, foi m factor de sobrevivência, uma vantagem. Muitos intelectuais soçobravam porque se encontravam face a um trabalho que nunca tinham efectuado, confrontados com a obrigação de trabalhar fisicamente, de se ocuparem de coisas que um homem abastado nunca faz, escovar as roupas sem escova, com as mãos, com as unhas...
- De cuidar de si próprio.
- Sim, em vez de deixar esse cuidado a outros.
- Com efeito, nas famílias esse trabalho recaía sobre as mulheres, a esposa, a criada...
- Claro, encarregava-se dele qualquer outra pessoa. Em contrapartida, no Lager era necessário tomá-lo a peito. Eu próprio estive em grande perigo nos primeiros dias por causa de um facto importante para nós italianos: a impossibilidade de comunicar; e creio que fui salvo pela amizade. Senti essa impossibilidade como um ferro em brasa a queimar-me, como uma tortura; caíamos num meio onde não compreendíamos uma palavra, onde a palavra não podia ser compreendida, onde não conseguíamos ser entendidos. Era uma grande sorte encontrar um italiano com quem comunicar. Éramos poucos italianos, cerca de cem em dez mil, um por cento dos presos do Lager, e os estrangeiros a falar a nossa língua eram raros; entre nós quase ninguém falava alemão ou polaco, só alguns falavam francês. Sofríamos de um terrível isolamento linguístico. E descobrir uma brecha, um meio de ultrapassar esse isolamento linguístico, era um factor de sobrevivência. E encontrar na outra extremidade do fio uma pessoa amiga era a salvação. Ora, este rapaz, Alberto, de quem falei frequentemente nos meus livros, era o homem providencial, tinha coragem para dar e vender, para ele e para os outros, tinha todas as condições para a prodigalizar e eu fui parar ao pé dele por mero acaso, sem nunca compreender muito bem... Encontrei nele um salvador; não sei o que é que ele encontrava em mim para me dizer: "És uma pessoa de sorte." Eu não sabia bem no que ele se baseava para dizer isso, mas o destino veio a mostrar-me depois que tive sorte. Tentei várias vezes teorizar sobre o que me tinha salvo e concluí pouca coisa, concluí que o acaso tinha sido o factor dominante. Por exemplo, no meu caso, eu, que não tinha uma saúde particularmente sólida, estive um ano inteiro sem adoecer, mesmo de uma banal infecção, que aliás podia ser perigosa.
- E depois, finalmente...
- Fiquei doente numa altura propícia, quando era uma sorte, porque os alemães abandonaram, de forma completamente imprevisível, os doentes ao seu destino.»

Primo Levi, O Dever de Memória

Donne ch'avete intelletto d'amore

Donne ch'avete intelletto d'amore,
i' vo' con voi la mia donna dire,
non perch'io creda sua laude finire,
ma ragionar per isfogar la mente.
Io dico che pensando il suo valore,
Amor sì dolce mi si fa sentire,
che s'io allora non perdessi ardire,
farei parlando innamorar la gente.
E io non vo' parlar sì altamente,
ch'io divenisse per temenza vile;
ma tratterò del suo stato gentile
a respetto di lei leggeramente,
donne e donzelle amorose, con vui,
ché non è cosa da parlarne altrui.

Dante Alighieri, Vita Nuova

Artur Agostinho no Leão da Estrela

segunda-feira, 21 de março de 2011

Francis Poulenc - Litanies à la Vierge Noire

ESTÉTICA DA ABDICAÇÃO

«Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima sempre. O melhor e o mais púrpura é abdicar. O império supremo é o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em quem o cuidado da supremacia não pesa como um fardo de jóias.»

Fernando Pessoa

domingo, 20 de março de 2011

Best Coast - Boyfriend

Viaggio

«2. Il viaggio dunque come persuasione. Forse è soprattutto nei viaggi che ho conosciuto la persuasione, nel senso dato a questa parola da Carlo Michelstaedter; quella vita autosufficiente, libera e appagata che Enrico, il personaggio del mio romanzo Un altro mare, insegue con autodistruttivo e vano accanimento. La persuasione: il possesso presente della propria vita, la capacità di vivere l'attimo, ogni attimo e non solo quelli privilegiati ed eccezionali, senza sacrificarlo al futuro, senza annientarlo nei progetti e nei programmi, senza considerarlo semplicemente un momento da far passare presto per raggiungere qualcosa d'altro. Quasi sempre, nella propria esistenza, si hanno troppe ragioni per sperare che essa passi il più rapidamente possibile, che il presente diventi quanto più velocemente futuro, che il domani arrivi quanto prima, perché si attende con ansia il responso del medico, l'inizio delle vacanze, il compimento di un libro, il risultato di un'attività o di un'iniziativa e così si vive non per vivere ma per avere già vissuto, per essere più vicini alla morte, per morire.»

Claudio Magris, L'Infinito Viaggiare

Angela GHEORGHIU - Vissi d'arte - Tosca - Puccini

13. Ela

Eu sou. De pé eu sou
igual a mim mesma e ao passado
por onde não passaste
nem passarás acaso
senão como faúlha,
breve e cálida ilusão
na escuridão fechada.

Eu sou. E não sei que te digo,
aqui de pé por sobre as tábuas
que alguém pôs sob os meus pés
e se desfazem no meu peito
no exacto momento
em que ele próprio se constrói.

Pedro Tamen, Um Teatro às Escuras

sábado, 19 de março de 2011

RENATA TEBALDI -LA RONDINE- G.Puccini -sogno di Doretta- Aria di Magda

Experiência da morte

«Mas então, como é que «regressa» - se é que regressa, tal como me parece - o religioso na minha-nossa experiência actual? No que me diz respeito pessoalmente, não me envergonho de dizer que ela tem a ver com a experiência da morte - de pessoas queridas com quem tinha pensado percorrer um caminho muito mais longo, nalguns casos pessoas que sempre imaginara perto de mim quando chegasse a minha vez de me ir embora e que considerava estimáveis pela sua capacidade (afectuosa ironia perante o mundo, aceitação dos limites de cada um...) de tornar aceitável e vivível a própria morte (...).
Talvez, para lá destes incidentes, aquilo que volte a pôr em jogo, a certa altura da vida, a questão da religião tenha a ver com a fisiologia da maturação e do envelhecimento. A ideia de fazer coincidir «exterior» e «interior», segundo o sonho do idealismo alemão (era esta a definição da obra de arte em Hegel, mas também, no fundo, o trabalho da razão para Fichte), isto é, a existência de facto com o seu significado, é redimensionada no decorrer da vida. Isto tem como consequência avivar a esperança de que esta coincidência, que não parece realizável no tempo histórico e no decurso de uma vida humana média, possa realizar-se num tempo diferente. Os postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus em Kant justificam-se precisamente com um argumento deste tipo. Se o esforço de praticar o bem, de agir segundo a lei moral, tem que ter um sentido, é preciso que se possa esperar racionalmente que o bem (isto é, a união da virtude e da felicidade) se realize noutro mundo, visto que neste, manifestamente, não se dá.»

Gianni Vattimo, Acreditar em Acreditar

O Sorriso louco das mães

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara loura
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

Herberto Helder

sexta-feira, 18 de março de 2011

Tom Waits In the Neighborhood

Luís de Camões

Camões é Os Lusíadas. O lírico, em quem os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico.
Não ocupa Os Lusíadas um lugar entre as primeiras epopeias do mundo; só a Ilíada, a Divina Comédia e o Paraíso Perdido ganharam essa elevação. Pertencendo, porém, à segunda ordem das epopeias, como a Jerusalém Libertada, o Orlando Furioso, a Faerie Queene – e, em certo modo, a Odisseia e a Eneida, que participam das duas ordens, - distingue-se Os Lusíadas não só destas epopeias, suas pares, senão também daquelas, suas superiores, em que é directamente uma epopeia histórica.
A vastidão impressiva de fábula, que uma epopeia requer, buscaram-na os antigos e os grandes modernos já na lenda ou na história indirecta, já no Além. Em aquelas se fundamentam, de diverso modo, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Jerusalém de Tasso; na lenda absoluta, ou fantasia pura, o poema de Spencer e o Orlando; no Além – o Além pagão do Cristismo – a epopeia de Dante e a de Milton.
A Camões bastou a história próxima para lenda e Além. O povo, que cantou, fizera da ficção certeza, da distância colónia, da imaginação vontade. Sob os próprios olhos do épico se desenrolou o inimaginável e o impossível se conseguiu. Sua epopeia não foi mais que uma reportagem transcendente, que o assunto obrigou a nascer épica. Este Apolónio podia ter falado com seus Argonautas, este Homero ter ouvido da boca dos companheiros de seus Ulisses os terrores da caverna do Ciclope e a notícia imediata do encantamento das sereias. Em certo modo viveu o que cantou, sendo, assim, o único épico que foi lírico ao sê-lo. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de vários defeitos.
Resta dizer, de Camões, que não chegou para o que foi. Grande como é, não passou do esboço de si próprio. Os sobre-homens da nossa glória constelada – o Infante e Albuquerque mais que todos – não cabem no que ele podia abarcar. A epopeia que Camões escreveu pede que aguardemos a epopeia que ele não pôde escrever. A maior coisa nele é o não ser grande bastante para os semideuses que celebrou.


Fernando Pessoa, “Luís de Camões”
[Diário de Lisboa, 4 de Fevereiro de 1924]


quinta-feira, 17 de março de 2011

My One And Only Love Art Tatum & Ben Webster

259.

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu veto manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Miles Davis - Concierto de Aranjuez (1/2)

Lusíadas

«A glória actual de Os Lusíadas parece por isso estar relacionada com aspectos da obra, convenientemente expurgados de implicações políticas e autobiográficas indesejáveia, e a obra é hoje celebrada, pelo menos em Portugal, sobretudo pelo seu valor cognitivo e acúmen filosófico. Dúzias de livros e artigos, a maior parte dos quais entusiasticamente encorajados por comissões e institutos públicos (et pour cause) têm ultimamente sido devotados às descrições minuciosas que Camões terá feito de calamidades meteorológicas, pormenores geográficos, espécies vegetais e animais, curiosidades etnográficas e coisas de marinharia. O poeta foi alternadamente louvado pela sua antecipação do cálculo infinitesimal e do materialismo histórico, coincidindo a maior parte dos louvores na exaltação de um extraordinário encontro de culturas que Os Lusíadas, ao arrepio de uma prevalecente pandemia eurocêntrica, inauguram. É bom ver que o excepcionalismo português está bem e se recomenda, apesar de todas as expedições etnológicas do poema invariavelmente terminarem na farsa e no desastre, com Fernões Velosos (no Canto V) e Leonardos (no Canto IX), seguros da sua força (no primeiro caso) e do seu Petrarca (no segundo) a reiterarem, isso sim, a figura do arroseur arrosé, do etnólogo caçado pelos seus objectos: onde imagináramos o Tenente Valadim, encontramos sempre Ovídio. A obstinação com que teses gerais sobre o livro contradizem os pormenores mais incontroversos do próprio livro parece sugerir que o que em todos estes casos se dá por adquirido é porventura o dócil valor de exemplo do poema propriamente dito. Em consequência, quer o cepticismo cognitivo difuso do poema, quer as suas qualidades literárias (sem falar na relação entre estas duas coisas) foram quase completamente esquecidos - e justamente só não foram esquecidos pelos melhores comentadores do poema, a começar por Faria e Sousa.»

Miguel Tamen, Artigos Portugueses

terça-feira, 15 de março de 2011

Bob Dylan - Sweetheart Like You

Portugal

«O que permitiu à Europa dominar Portugal, chegando ao extremo de lhe apresentar o que há de mais estrangeiro, de mais alheio à índole nacional, como inteiramente nacionalista, foi o pecado de ter levantado como valores supremos de vida humana os do adulto, o saber, o trabalho e aquela separação de sujeito-objecto que permite a filosofia, a ciência e a técnica. A Europa se vendeu ao Diabo e o dinheiro que nisso ganhou lhe serviu para comprar Portugal.
E, comprendo-o, destruiu o último refúgio que ainda poderia haver no mundo para as qualidades distintivamente humanas, as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação; são essas e não as outras as que têm demonstrado os grandes criadores de ciência, os grandes artistas, ou os grandes políticos: por isso os perseguimos quando vivos e os aproveitamos, porque já eficientes, quando seguramente mortos. Não haverá salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar me nossas consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de conservar crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus verdadeiro.»

Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa

segunda-feira, 14 de março de 2011

LAURIE ANDERSON - KOKOKU

Mitzváh

«O que quer dizer para mim o Kipúr? Quer dizer sentir-me judeu. E que quer dizer sentir-me judeu? Quer dizer sentir-me eu próprio. Uma pessoa que vem de longe, que atravessou muitas vidas numa só e que sempre teve como ponto de referência o ser judeu. Ser judeu quer dizer prestar atenção, fazer o melhor possível para garantir alguma certeza a si mesmo e aos outros. Quer dizer saber ser olhado com suspeita, com inveja ou com respeito excessivo, mas de quelaquer modo como um perigo. Ser judeu quer dizer ter de defender-se, tentar construir uma força interior para não ser destruído. Ser judeu quer dizer ter a responsabilidade de levar para a frente a cultura de um povo com mais de cinco mil anos de história e que ninguém ainda conseguiu, apesar das muitíssimas tentativas, exterminar, mandar calar. Ser judeu é um exercício de modéstia. É preciso saber a priori que nem tudo é acessível a um judeu, assim como a uma pessoa de cor, a um homossexual ou um cigano.
Procurei não esquecer, em nenhuma circunstância, o facto de ser judeu e, portanto, de pertencer a um povo que, por um motivo ou por outro, sempre foi objecto de admiração, mas sobretudo de perseguição, de escárnio, de intolerância. O facto de se nascer assim pode enfraquecer ou tornar mais forte. O preconceito serve para aprender a defender-se, a lutar, a querer ser mais do que nunca nós mesmos, e mais do que nunca pertencer àquele povo de pastores errantes escolhido por Deus como povo eleito.
Quando vou ao deserto, aos países do Médio Oriente ou do Norte de África, sei que aqueles lugares são as minhas origens. Dali fugiu, depois da destruição do templo de Jerusalém, a família da minha mãe para ir para Espanha e para ser, mais tarde, expulsa pela Rainha Isabel, a Católica, e ter de se refugiar no Piemonte, donde foi novamente forçada pelas leis raciais, promulgadas em 1938 por mussolini e pelo rei Vítor Emanuel II, a emigrar para os Estados Unidos.
De Jerusalém  fugiu a família do meu pai para refugiar-se na Alemanha, depois na Alsácia e por fim nos Estados Unidos.
Na minha família falaram-se muitas línguas: o espanhol, o italiano, o inglês, o francês, o alemão, mas a única que sempre a manteve unida foi a das orações. O Shemá Israel que se reza de manhã ao acordar e o Kadish que se reza durante as funções religiosas e também quando se está de luto.»

Alain Elkann, Mitzváh

domingo, 13 de março de 2011

Natalie Dessay - La Sonnambula: Care compagne...Sovra il sen la man mi posa - LIVE Vienna 2010

Luís Vaz de Camões

«Os trigais, as vinhas, as árvores de fruto, extensões agrestes e estéreis eram o país. Os judeus estavam em fuga e as moedas luziam menos debaixo da chuva. Portugal estava bem povoado, excepto no Algarve, diz Monetarius; e Setúbal abastecia de sardinha todo o Mediterrâneo até Constantinopla.
Luís Vaz teria feito riqueza nos Países Baixos, se Coimbra não tivesse sido determinante para a sua escrita. Conta-se que, um dia, outro rapaz injuriou-o. Luís Vaz correu a dizer a seu tio Bento. Este não tinha em Santa Cruz uma espada para lhe dar. Uma dessas peças de cabo trabalhado a pedras semi-preciosas e bronze. Tirou da mesa de trabalho uma pena e molhou-a na ferruginosa tinta. Era uma pena com incrustações a azul e marfim e, quem sabe se carregada de poderes. Luís Vaz segurou-a com a mão nervosa e o riso escarninho dos louros atlânticos. A surpresa do gesto de seu tio anulou-lhe a injúria e uma ordem na voz avassalaria as escritas suas contemporâneas. Versos a Pero Moniz, por exemplo, que foi natural de Alenquer e que viria aos vinte e poucos anos a ser repasto de peixes no mar da Abassia; afrontas do destino era o seu fado narrá-las.»

João MIguel Fernandes Jorge, Uma Paixão Inocente

sábado, 12 de março de 2011

Suzanne Vega - Undertow (Rare 1984 Demo) *Audio*

Silêncio

A verticalidade resiste a uns olhos
húmidos
que resistem a contemplar
a terra macia,
pronta a acolher o invólucro
já quase despido.
Balançam no escuro
anjos flamejantes e festivos

Sorriem,
deixando adivinhar
uma espécie de bonança
sem regresso

É no escuro que se vence
o medo de sufocar
de existir

Não me venham com conversa fiada
não cabe em mim a esperança
do novo dia
por isso a carne amolece
preparando-se, fazendo-se
ao leito que a há-de acolher
e em espírito julga
Sobreviver
porque assim lho disseram
na idade tenra do sol a brilhar

Ainda quer acreditar nesse
sol e nele depositar a esperança
fugidia

A mesma esperança
que lhe vem de dentro
de um lugar recôndito
de onde de si para si
Resiste.

sexta-feira, 11 de março de 2011

round midnight~As Time Goes By

I

Falai-me, pedras, ó falai, altos palácios!
Ruas, dizei uma palavra! Génio, não te moves?
Sim, tudo tem alma entre os teus muros sagrados,
Roma Eterna, só para mim tudo se cala ainda.
Oh, quem me sussura, em que janela avisto eu
A criatura graciosa que me incendeia e me sacia?
Não adivinho ainda os caminhos pelos quais sempre de novo irei
Para ela e dela regressarei, sacrificando-lhe assim o precioso tempo.
Ainda contemplo igrejas e palácios, ruínas e pilares
Como um homem prudente que aproveita a viagem.
Mas em breve isso acabará, e será um único templo,
O do Amor, a receber o predestinado.
És sem dúvida o mundo, ó Roma, mas sem o amor
O mundo não seria o mundo, e também Roma não seria Roma.

Goethe, Erótica Romana

quinta-feira, 10 de março de 2011

Gary Burton-The Last Clown

Alquimia

«A primeira função do homem poeta é a descoberta do verdadeiro significado do seu eu. O poeta tem de se conhecer a si mesmo,, tem de desvendar a sua alma «inteira». Não é do eu individual que se trata, nesta procura, (os que ficam por aí são os limitados autores a que Rimbaud chama «egoístas», que não ultrapassam o domínio do ego) trata-se da imensidade da alma, de pôr a descoberto e percorrer os seus mais longínquos limites, os seus mais profundos conteúdos, nem que para isso haja que a desregrar, desequilibrar, tornar mesmo monstruosa. Ser «vidente», fazer-se «vidente» de todas as maneiras, para chegar a ser conhecedor de si mesmo, e mais do que de si mesmo, da «alma universal». Na alma reside o mistério. E vale a pena pagar todos os preços, mesmo o do crime, mesmo o da loucura, para se chegar a ele. Desvendar o mistério é chegar ao «desconhecido», e poder contemplá-lo e exprimi-lo é a suprema realização. O além, («là-bas») é o verdadeiro domínio do poeta, e a formalização dos conteúdos desse além a sua verdadeira missão. A linguagem poética universal que Rimbaud proclama é uma linguagem «da alma para a alma» e cabe ao poeta definir a «quantidade de desconhecido» que em cada época se arranca à alma universal. Nada se explica, nem na poesia em si, nem no seu progresso ao longo dos tempos, que não seja em função dos conteúdos do inconsciente colectivo que ela descobre e actualiza.»

Yvette K. Centeno, A Alquimia do Amor

quarta-feira, 9 de março de 2011

Purcell: The Fairy Queen, excerpts (1)

Either/ Or

«On the other hand, what was it that delayed the fall of Rome? It was panis [bread] and circenses [games]. What is being done in our day? Is consideration being given to any means of amusement? On the contrary, our doom is being expedited. There is the idea of convening a consultative assembly. Can anything more boring be imagined, both for the honorable delegates as well as for one who will read and hear about them? The country's financial situation is to be improved by economizing. Can anything more boring be imagined? Instead of increasing the debt, they want to pay ir off in installments. From what I know about the political situation, it would be easy for Denmark to borrow fifteen million rix-dollars. Why does no one think of this? Now and then we hear that someone is a genius and does not pay his debts; why should a nation not do the same, provided there is agreement? Borrow fifteen million; use it not to pay off our debts but for public entertainment. Let us celebrate the millennium with fun and games. Just as there currently are boxes everywhere for contributions of money, there should be bowls everywhere filled with money. Everything would be free (...). I say "free", for if money is always available, everything is free in a way.»

Soren Kierkegaard, Either/ Or

terça-feira, 8 de março de 2011

Finale (Choral)- A Midsummer Night's Dream

XLVIII - Any Where Out of the World, N'Importe Où Hors du Monde

«Cette vie est un hôpital où chaque malade est possédé du désir de changer de lit. Celui-ci voudrait souffrir en face du poêle, et celui-lá croit qu'il guérirait à côté de la fenêtre.
Il me semble que je serais toujours bien là où je ne suis pas, et cette question de déménagement en est une que je discute sans cesse avec mon âme.
«Dis-moi, mon âme, pauvre âme refroidie, que penserais-tu d'habiter Lisbonne? Il doit y faire chaud, et tu t'y ragaillardirais comme un lézard. Cette ville est au bord de l'eau; on dit qu'elle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal, qu'il arrache tous les arbres. Voilà un paysage selon ton goût; un paysage fait avec la lumière et le minéral, et le liquide pour les réfléchir!»
Mon âme ne répond pas.
«Puisque tu aimes tant le repos, avec le spectacle du mouvement, veux-tu venir habiter la Hollande, cette terre béatifiante? Peut-être te divertiras-tu dans cette contrée dont tu as souvent admiré l'image dans les musées. Que penserai-tu de Rotterdam, toi qui aimes les forêts de mâts, et les navires amarrés au pied des maisons?»
Mon âme reste muette.
«Batavia te sourirait peut-être davantage? Nous y trouverions d'ailleurs l'esprit de l'Europe marié à la beauté tropicale.»
Pas un mot. - Mon âme serait-elle morte?
«En est-tu donc venue à ce point d'engourdissement que tu ne te plaises que dans ton mal? S'il en est ainsi, fuyons vers les pays qui sont les analogies de la Mort. - Je tiens notre affaire, pauvre âme! Nous ferons nos malles pour Tornéo. Allons plus loin encore, à l'extrême bout de la Baltique; encore plus loin de la vie, si c'est possible; intallons-nous au pôle. Là le soleil ne frise qu'oubliquement la terre, et les lentes alternatives de la lumière et de la nuit suppriment la variété et augmentent la monotonie, cette moitié du néant. Là, nous pourrons prendre de longs bains de ténèbres, cependant que, pour nous divertir, les aurores boréales nous enverront de temps en temps leurs gerbes roses, comme des reflets d'un feu d'artifice de l'Enfer!»
Enfin, mon âme fait explosion, et sagement elle me crie: «N'importe où! N'importe où! pourvu que ce soit hors de ce monde!»»

Charles Baudelaire, Petits Poèmes en Prose

segunda-feira, 7 de março de 2011

Liberdade

«Non era, di certo, una parola nuova nella storia, come non era nuova nella letteratura e nella poesia, e nella rettorica finanche delle letteratura e della poesia. Grecia e Roma avevano tramandato le memorie d'innumeri eroi della libertà, e di gesta sublimi e di tragedie nelle quali si era, magnanimamente, per la libertà «che è sì cara», rifiutata la vita. Libertà avevano invocato i cristiani e, nei secoli, le loro chiese; libertà, i comuni contro gl'imperatori e i re, e libertà da parte loro i feudatari e baroni contro gli stessi re e imperatori, e questi a lor volta contro i baroni e i grossi vassalli e contro le comunità usurpatrici di diritti sovrani; libertà, i regni, le provincie, le città, solleciti dei propri parlamenti e capitoli e privilegi, contro le monarchie assolute che si sbarazzavano o tentavano di sbarazzarsi di questi ostacoli e limiti alla loro azione. La perdita della libertà era stata sempre considerata cagione o segno di decadenza nelle arti, nelle scienze, nella economia, nella vita morale, o che si guardasse alla Roma dei cesari o all'Italia degli Spagnuoli e dei Papi. Pur testè, la «libertà», in compagnia dell'«eguaglianza» e delle «fratellanza», aveva scosso e sparso in rovine, con la forza di un terremoto, tutto l'edificio della vecchia Francia e quasi tutto quello della vecchia Europa; e l'impressione paurosa ancora ne durava, e parrebbe avesse dovuto togliere a quel nome l'aureola di cosa bella e l'attraenza di cosa nuova. E, in effetto, il trinomio, di cui aveva fatto parte, - l'«immobile triangolo immortale della Ragione», come lo aveva chiamato il poeta Vincenzo Monti, - cadde in discredito e quasi venne in aborrimento; ma la Libertà riascese da sola sull'orizzonte, ammirata come stella d'impareggiabile fulgore. E quella parola era pronunziata dalle giovani generazioni con l'accento commosso di chi ha pur ora scoperto un concetto d'importanza vitale, rischiaratore del passato e del presente, guida nell'avvenire.»

Benedetto Croce, Storia d'Europa nel secolo decimonono

Canis Major

The great Overdog
That heavenly beast
With a star in one eye
Gives a leap in the east.
He dances upright
All the way to the west
And never once drops
On his forefeet to rest.
I'm a poor underdog,
But to-night I will bark
With the great Overdog
That romps through the dark.

Robert Frost

Primo Levi

André e Antoine

«Fu Frau Vita a chiudere gli occhi a André e ad Antoine. Erano due giovani contadini Vosgi, entrambi miei compagni dei dieci giorni di interregno, entambi ammalati di difterite. Mi sembrava di conoscerli da secoli. Con strano parallelismo, furono colpiti simultaneamente da una forma dissenterica, che presto si rivelò gravissima, di origine tubercolare; e in pochi giorni la bilancia del loro destino diede il tracollo. Erano in due letti vicini, non si lamentavano, sopportavano le coliche atroci a denti stretti, senza comprenderne la natura mortale; parlavano solo fra di loro, timidamente, e non chiedevano soccorso a nessuno. André fu il primo a partire, mentre parlava, a metà di una frase, come si spegne una candela. Per due giorni nessuno venne a rimuoverlo: i bambini lo venivano a guardare con curiosità smarrita, poi continuavano a giocare nel loro angolo.
Antoine rimase silenzioso e solo, tutto chiuso in una attesa che lo trasfigurava. Il suo stato di nutrizione era discreto, ma in due giorni subí una metamorfosi struggente, come risucchiato dal vicino. Insieme con Frau Vita riuscimmo, dopo molti tentativi vani, a far venire un dottore: gli chiesi, in tedesco, se c'era qualcosa da fare, se c'erano speranze, e gli raccomandai di non rispondere in francese. Mi rispose in yiddish, con una frase breve che non compresi: allora tradusse in tedesco: «Sein Kamerad ruft ihn», il suo compagno lo chiama. Antoine obbedí al richiamo quella sera stessa. Non avevano ancora vent'anni, ed erano stati in Lager un solo mese.»

Primo Levi, La Tregua

domingo, 6 de março de 2011

Talking Heads - Heaven

(Quaresma)

«Não era, propriamente, só a tez carregadamente morena, mais até que morena, do Vieira que o fazia até certo ponto uma figura reparável. Há em Portugal o número bastante de trigueiros carregados, e de criaturas com sangue índio ou negro, para que a cor variamente escura, que revelam, embora não seja o normal do português - simplesmente moreno ou claro não muito claro -, não seja motivo de reparo especial. O que torna o Vieira reparável, o fazia não esquecer, era a cor dos olhos, que, sendo de um castanho relativamente claro, natural no tipo de cabelo da mesma cor, destacavam marcadamente, como se fossem pálidos, da tez caregadamente morena. Essa circunstância tornava o Vieira quasi inesquecível. A evidente mistura de raças dera, pela única operação da hereditariedade, uma conjugação, no fácies, de caracteres contraditórios. O fenómeno, sem ser único, é raro. Tanto bastava para o Vieira «não esquecer».»

Ferando Pessoa, Quaresma, Decifrador, as novelas policiárias

sábado, 5 de março de 2011

Chet Baker - Tenderly

Influência

«Freud distingue entre duas fases tardias do romance familiar, uma em que a criança acredita que é enjeitada e uma em que acredita que a sua mãe teve muitos amantes na posição do seu pai. O movimento entre fantasias é aqui sugestivamente redutor, na medida em que a noção de uma origem elevada e de um destino frustrado dá lugar a imagens de degradação erótica. Blake, ao insistir que Tirzah ou a Necessidade era apenas a mãe da sua parte mortal descobriu (como quase sempre) que era uma dialéctica de distinções aquilo que o libertava das preocupações do romance familiar. Mas a maior parte dos poetas - como a maior parte dos homens - padece de uma versão de romance familiar ao lutar para definir uma relação o mais vantajosa possível  para com o seu precursor e a sua Musa. O poeta forte - como o grande homem hegeliano - é ao mesmo tempo o herói da história poética e a sua vítima. Esta vitimização aumentou à medida que a história se desenrolava visto que a angústia da influência é tanto mais forte quanto mais lírica, mais subjectiva, é a poesia, a deriva directamente da personalidade. Na concepção hegeliana um poema é apenas um prelúdio de uma percepção religiosa, e num poema lírico desenvolvido o espírito encontra-se tão separado do sensível que a arte está prestes a dissolver-se em religião. Mas nenhum poeta forte, no seu apogeu demandante, pode (como poeta) aceitar esta concepção hegeliana. E não seria para si que a história iria ser consolo para vitimizações.»

Harold Bloom, A Angúsita da Influência, uma teoria da poesia

sexta-feira, 4 de março de 2011

Philip Glass: wichita vortex sutra

Estetica

«Perchè a me sembra che l'Estetica, quando sia abilmente insegnata, introduca forse meglio di ogni altra disciplina filosofica all'apprendimento della filosofia, non essendoci materia che svegli così presto l'interesse e la riflessione dei giovani, come l'arte e la poesia: ladove la Logica, che presuppone l'esercizio delle indagini scientifiche, rimane per essi, nella più parte  delle sue teorie, troppo astratta; e l'Etica (almeno in Italia, dove per ben note ragioni storiche manca lo stimolo che lo spirito religioso esercita sulla meditazione dell'umano destino) suona di solito come un noioso predicozzo; e la cosiddetta «Psicologia», piuttosto che avviamento, è sviamento dalla filosofia.»

Benedetto Croce, Breviario di estetica 

quinta-feira, 3 de março de 2011

Vivaldi,GLORIA : Domine Deus

Daniel

Por isso Daniel foi ter com Arioque, ao qual o rei tinha constituído para matar os sábios de Babilônia; entrou, e disse-lhe assim: Não mates os sábios de Babilônia; introduze-me na presença do rei, e lhe darei a interpretação. Então Arioque depressa introduziu Daniel à presença do rei, e disse-lhe assim: Achei dentre os filhos dos cativos de Judá um homem que fará saber ao rei a interpretação. Respondeu o rei e disse a Daniel, cujo nome era Beltessazar: Podes tu fazer-me saber o sonho que tive e a sua interpretação? Respondeu Daniel na presença do rei e disse: O mistério que o rei exigiu, nem sábios, nem encantadores, nem magos, nem adivinhadores lhe podem revelar; mas há um Deus no céu, o qual revela os mistérios; ele, pois, fez saber ao rei Nabucodonozor o que há de suceder nos últimos dias. O teu sonho e as visões que tiveste na tua cama são estas: Estando tu, ó rei, na tua cama, subiram os teus pensamentos sobre o que havia de suceder no futuro. Aquele, pois, que revela os mistérios te fez saber o que há de ser. E a mim me foi revelado este mistério, não por ter eu mais sabedoria que qualquer outro vivente, mas para que a interpretação se fizesse saber ao rei, e para que entendesses os pensamentos do teu coração. Tu, ó rei, na visão olhaste e eis uma grande estátua. Esta estátua, imensa e de excelente esplendor, estava em pé diante de ti; e a sua aparência era terrível. A cabeça dessa estátua era de ouro fino; o peito e os braços de prata; o ventre e as coxas de bronze; as pernas de ferro; e os pés em parte de ferro e em parte de barro. Estavas vendo isto, quando uma pedra foi cortada, sem auxílio de mãos, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro, e os esmiuçou. Então foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a pragana das eiras no estio, e o vento os levou, e não se podia achar nenhum vestígio deles; a pedra, porém, que feriu a estátua se tornou uma grande montanha, e encheu toda a terra. Este é o sonho; agora diremos ao rei a sua interpretação. Tu, ó rei, és rei de reis, a quem o Deus do céu tem dado o reino, o poder, a força e a glória; e em cuja mão ele entregou os filhos dos homens, onde quer que habitem, os animais do campo e as aves do céu, e te fez reinar sobre todos eles; tu és a cabeça de ouro. Depois de ti se levantará outro reino, inferior ao teu; e um terceiro reino, de bronze, o qual terá domínio sobre toda a terra. E haverá um quarto reino, forte como ferro, porquanto o ferro esmiúça e quebra tudo; como o ferro quebra todas as coisas, assim ele quebrantará e esmiuçará. Quanto ao que viste dos pés e dos dedos, em parte de barro de oleiro, e em parte de ferro, isso será um reino dividido; contudo haverá nele alguma coisa da firmeza do ferro, pois que viste o ferro misturado com barro de lodo. E como os dedos dos pés eram em parte de ferro e em parte de barro, assim por uma parte o reino será forte, e por outra será frágil. Quanto ao que viste do ferro misturado com barro de lodo, misturar-se-ão pelo casamento; mas não se ligarão um ao outro, assim como o ferro não se mistura com o barro. Mas, nos dias desses reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; nem passará a soberania deste reino a outro povo; mas esmiuçará e consumirá todos esses reinos, e subsistirá para sempre. Porquanto viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro, o grande Deus faz saber ao rei o que há de suceder no futuro. Certo é o sonho, e fiel a sua interpretação. Então o rei Nabucodonozor caiu com o rosto em terra, e adorou a Daniel, e ordenou que lhe oferecessem uma oblação e perfumes suaves. Respondeu o rei a Daniel, e disse: Verdadeiramente, o vosso Deus é Deus dos deuses, e o Senhor dos reis, e o revelador dos mistérios, pois pudeste revelar este misterio. Então o rei engrandeceu a Daniel, e lhe deu muitas e grandes dádivas, e o pôs por governador sobre toda a província de Babilônia, como também o fez chefe principal de todos os sábios de Babilônia. A pedido de Daniel, o rei constituiu superintendentes sobre os negócios da província de Babilônia a Sadraque, Mesaque e Abednego; mas Daniel permaneceu na corte do rei.

                                                                                                    Daniel, 2, 24-49

quarta-feira, 2 de março de 2011

Wim Mertens We are the thieves

A Luís de Camões

Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heróicas espadas. Pobre e triste,
À nostágica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.

Jorge Luis Borges, O Fazedor

A idade

Quem de forma justa e sagrada
Passa a vida,
Docemente alimentando-lhe o coração,
Longa vida criando,
A esse acompanha-o a esperança, que
À maioria dos mortais
Rege a tão versátil opinião.

Uma das mais belas imagens da vida, o modo como os costumes inocentes preservam o coração vivo, de onde nasce a esperança; esta concede então também à simplicidade um florescimento, com as suas diversas tentativas, e torna ágil o sentido, e tão longa a vida, na sua demora precipitada.

Friedrich Holderlin, Fragmentos de Píndaro