Acerca de mim

A minha foto
Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Alice, por fim...

De acordo com Humpty Dumpty um nome denota e determina uma forma. Um nome não se refere apenas ao seu portador, mas determina a forma do seu portador. Deste modo, a forma, na perspectiva de Humpty Dumpty, é apresentada, por um lado, como objecto de denotação à posteriori, e, por outro, como efeito do uso do nome, daqui decorrendo que as palavras têm consequências físicas, capazes de determinarem, partindo da forma adquirida pelo portador de um determinado nome próprio, se o nome é bom ou mau.
Humpty Dumpty interpreta perguntas de forma a entendê-las como capazes de terem uma solução. É o caso, por exemplo, da pergunta sobre a extensão ou significado de “estar aqui sozinho”, apresentando como resposta “porque não tenho ninguém ao pé de mim”, como se a solução para a resposta (esta resposta) resultasse simplesmente da sua extracção a partir da forma da pergunta. Por conseguinte, Humpty Dumpty entende todas as perguntas como se fossem adivinhas, o que, para ele, corresponde a poder responder a todas as perguntas, visto que, procedendo deste modo, a resposta não depende do conhecimento, tratando-se, então, de derivar a resposta dos termos da pergunta formulada.
Para Humpty Dumpty, adivinhas são coisas que podem não ser notoriamente adivinhas, mas que podem ser adivinhas. Tal como os poemas. O significado de uma adivinha, como dos poemas, encontra-se no interior da pergunta, daqui resultando um método que não distingue quem percebe de quem não percebe alguma coisa. Sendo assim, responder a uma pergunta implica interpretar, enquanto que responder a uma adivinha, não implica interpretar. O confronto que se apresenta no texto, corresponde àquilo que ocorre com Alice, no momento em que ela interpreta uma coisa que não era para interpretar, ao afirmar a sua idade, em contraponto com a maneira como Humpty Dumpty reage a qualquer pergunta. Com efeito, Alice calcula, reconhece a distinção entre sentido e intenção e, por isso mesmo, interpreta, enquanto que Humpty Dumpty não reconhece, não calcula e, por esse motivo, não interpreta. Daqui decorre que, para Humpty Dumpty, não é possível saber-se o significado de nenhum termo antes que ele seja estipulado por quem fala, esgotando-se em cada ocorrência, numa máquina de estipular imparável.
De certo modo, aquilo que em Humpty Dumpty se encontra em relação a adivinhas, parece ter uma correspondência com a ideia de moral de que podemos dar conta em relação à Duquesa. Para um como para o outro, adivinhas e morais, respectivamente, têm uma relação com a forma do que se afirma, não com questões relacionadas com cálculo ou com interpretação, envolvendo, assim, uma ideia de que é possível extrapolar seja o que for em relação a qualquer coisa.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Feliz Natal!

Religião e Serenidade

É comum afirmar-se que a religião proporciona o consolo e a serenidade que nenhuma filosofia pode dar. No entanto, como consideração de facto, não ousaria dizer que seja deste modo. Olho à minha volta e recolho as minhas recordações dos homens religiosos (e entendo ingenuamente crentes numa determinada religião),com quem vivi ou com quem me confrontei, e não os reconheço como sendo ou tendo sido mais serenos ou conturbados do que os outros homens não religiosos (não crentes), que também conheci. As manifestações de alegria e de dor são as mesmas nuns como nos outros. Nem mesmo a história me oferece um espectáculo diferente, a história dos santos, dos grandes santos que eram grandes homens: todos eles inquietos, agitados pela dúvida, atormentados pelo escrúpulo moral e pelo sentido da impureza. Tal e qual como os que não são santos (refiro-me aos não santificados).
Dir-se-á que os homens religiosos e os santos também são homens,com as humanas fraquezas e misérias. E está bem. Coloquemos de parte a questão de facto. Assim sendo, por que razão ideal a religião seria capaz de proporcionar a serenidade que a filosofia não pode dar? Podemos responder: porque oferece a estabilidade da fé. Mas a fé não é específica da religião: todos os pensamentos, desde que sejam pensados, tornam-se fé, ou seja, de coisa em devir passam a coisa concretizada, de coisa pensada a coisa não pensada, da coisa dinâmica a coisa estável ou estática. Desse modo temos a fé dos materialistas, dos positivistas e de toda a espécie de pensadores: fé que é evidentíssima sobretudo nos seus estudos: fé que ultrapassa montanhas (mesmo que sejam montanhas de coisas despropositadas). – Mas a fé da religião é inabalável e a destas filosofias e escolas vacila constantemente. – Não é verdade. É sólida e vacilante, nem mais nem menos que a das religiões, cujos dogmas são sujeitos à discussão e evoluem e que, de qualquer maneira, são obrigados a circundar-se de uma apologética, que não existiria se não existisse a possibilidade de dúvidas sobre a fé.
O argumento, portanto, não serve. Será que podemos então apresentar um outro argumento, segundo o qual as religiões (pelo menos algumas religiões), colocando a personalidade de Deus, tornam possível uma relação do homem com Deus, que se manifesta na oração, no pedido de socorro, suprema via de consolo «no desespero», tal como dizia Vico «a respeito de todos os socorros da natureza»? Esta seria a grande consolação, que a filosofia não pode dar? - O problema é que pedir ajuda e obtê-la são duas coisas diferentes. E a oração permanece frequentemente por ouvir. Daí que não é raro o espectáculo do homem que se torna descrente, ou que acusa a justiça de Deus e blasfema. E se, por nobreza de alma, não cai em nenhum destes erros, e se resigna à vontade divina, a Deus que vê mais longe do que nós, que faz ele afinal de diferente daquilo que fazem todos os homens não religiosos? Resignar-se, aceitar o que aconteceu, ter fé na racionalidade do mundo e da história do mundo?
Contudo, dir-se-á, por fim, que a religião (pelo menos em certas formas) é consoladora, porque promete que todos os sofrimentos, todas as perdas por nós sofridas, a própria morte, serão abolidos e compensados numa outra vida. Na verdade, também aqui, gostaria de recordar que a coisa não parece verdadeira, porque todos, crentes e não-crentes, temem e desprezam do mesmo modo o sofrimento e a morte e todos se consolam, à medida que o tempo passa, com a recuperação do trabalho da vida. Mas esta afirmação é falsa, mesmo quando examinada como ideia, visto que o pensamento da vida futura permanece, como teria dito Leibnitz, um pensamento surdo, não verdadeiramente pensado, inerte e, neste caso, não consola. Ou consola do mesmo modo que uma certa e vaga espera por um bem inesperado, que Heine, em tom de brincadeira, apresentava, dizendo, a propósito da imortalidade, que não acreditava que ela existisse, mas não podia tirar da sua mente a esperança de que o bom Deus nos prepara, depois da morte, «uma agradável surpresa». Ou então, por fim, pretende que seja um pensamento verdadeiro e, nesse caso, é preciso pensá-lo, e, pensando-o, examinando aquilo que nele é importante, fazendo nascer dele as suas consequências, vê-se que a vida ultra-terrena não é a terrena, que a beatitude celeste exclui os afectos terrenos e os desumaniza, que no paraíso não existirão, nem pais, nem mães, nem filhos, nem irmãos, nem esposas, nem amantes, mas espíritos beatos em Deus. Em suma, a outra vida é o perfeito oposto da vida terrena, que se perdeu ou se está para perder e que, ainda que única, aquela única vida, brama. Nós não reclamamos por termos em troca da criança perdida, da criança que enchia e fazia traquinices pela casa, um anjinho, no qual aquela criança se tenha transfigurado e tornado ireeconhecível; não reclamamos a mulher angelicada cujos lábios não beijámos, mas aquela que beijámos na vida. Impulsos egoístas, bem o sabemos, e que é preciso vencer, e vencer no pensamento da imortalidade. No entanto, exactamente por isso, da imortalidade purificada das escórias egoístas que a tornam contraditória, da imortalidade que a filosofia nos promete, a qual afirma, também ela, a imortalidade ultra-terrena e supra-individual, e demonstra que qualquer dos nossos actos, mal esteja concluído, se destaca de nós e vive uma vida imortal, e nós próprios (aqueles que realmente não somos outra coisa senão o processo dos nossos actos)somos imortais, visto que ter vivido é viver sempre. Pensamento que me parece mais consolador que o das religiões, pois diz o mesmo que elas dizem, mas di-lo de uma maneira mais clara e segura. Por que razão uma consolação clara e segura terá de ser menos válida que uma outra obscura e incerta?

Benedetto Croce, in «Etica e Politica»

sábado, 19 de dezembro de 2009

O sol è grande e o vento arrebata as folhas que violentamente se precipitam no alcatrão de uma estrada de estios longínquos. Sonhava com estios que me tirassem a roupa e me transportassem para longe. Desde que me conheço que sei não ser este o meu lugar, mas o pior è que também não sei qual è o meu lugar. Por isso vagueio, por isso persisto em buscar qualquer coisa, uma qualquer imprecisão que desconheço, mas que seguramente me permitirá um encontro. Não deve ser casual o facto de me dispersar facilmente diante das coisas comuns, tornando-as muitas vezes complicadas. Sem razão eu sou outro e adquiro características diferentes de mim mesmo em circunstâncias por vezes semelhantes. A minha ironia corresponde a uma necessidade vital de confrontar-me de forma sistemática com os poderes da argumentação. Argumentar corresponde a um processo de distanciação, muitas vezes profunda, entre as minhas teses temporárias e a perspectiva de as poder modificar. Quando me refiro aos meus problemas, estou sinceramente a nomear uma categoria de condições que trago comigo e para as quais procuro respostas. Eu sou da espécie daqueles que não têm um chão seguro, que sabem que qualquer certeza è suspceptível de ser aperfeiçoada, nem que seja pelo simples facto de poder ser contrariada de forma absoluta. O meu desafio è este e tem que ver em primeiro lugar comigo próprio. Por isso argumento.
No meio do caminho havia uma selva escura, não que me atormentasse a selva, mas as raízes profundas das suas árvores que escondidas agitavam a minha estrutura em construção. Pelos caminhos sinuosos da selva eu percorria um calvário de inseguranças que mais não eram do que a incapacidade de me deter a mim próprio no meu cogitar leviano. Não sei por que terei agitado o vaso da tranqulidade, não sei por que terei deixado verter a terra que me servira de suporte. Tudo aconteceu em mim e è comigo que me tenho de reencontrar. Escrevo porque uma serenidade subita me tomou e me permitiu alcançar o primeiro degrau da ordem interior. Que dizer de alguém que tem tudo e não descansa por atingir sempre mais. Eu vejo a morte acordar todas as manhãs, trago-a comigo e rio dela enquanto posso, mesmo que seja por pouco tempo. Ao mesmo tempo, prossigo em desafio, troço e desdenho, sabendo da sua irreversibilidade. A selva de que falo, persegue-me como se de uma figuração da morte se tratasse, agora que me encontro perdido, ela actua como um vírus tirânico, assola-me o espírito. O mais desconcertante è a minha insanidade que me faz transportar sistematicamente a um lugar outro em que eu sei que serei capaz de me iludir, julgando-me, mesmo que por breves momentos feliz vencedor de uma contenda sem história. Dentro de mim encontro razões para a necessidade vital de me alhear da inexorabilidade de um encontro, na fugacidade das coisas que apenas se deixam tocar.
Fazia muito calor. Um calor anormal para aquela época do ano. Noutras circunstâncias, teria sido capaz de se meter no carro e de partir à procura de uma praia onde não corresse riscos de encontrar alguém conhecido. Transpirava mesmo enquanto permanecia quieto. Bem vistas as coisas, podia agora aproveitar para ler um daqueles livros que sempre deixara para trás, enquanto aspirava uns sumos de limão muito açucarados. No entanto, à lembrança apenas lhe ocorriam pequenas histórias, entrecortadas por associações que lhe impossibilitavam atingir um final. Lembrava-se de alguns familiares, das suas características particulares. De um irmão que vivia numa cadeira de rodas desde os sete anos, de um avô que desde pequeno lhe alimentara o gosto pela aventura que ao mar se associava na sua terra natal. Havia, contudo, um espaço do seu raciocínio que ele ainda não conseguia alcançar. Ainda não era capaz de verbalizar os movimentos instintivos que sentia em determinados momentos em que o discernimento se lhe tolhia e apenas concedia a existência de um vaguear vazio que muitas vezes o fizera abeirar do abismo. Permanecia sentado numa enorme poltrona que Lorenzo comprara em Porta Portese no fim-de-semana anterior. Dissera-lhe que fora uma pechincha e que a comprara a um casal de filipinos com ar de esfomeados. Ao longe parecia rumorejar a cidade. O lugar, sentia-o Filipe, apresentava-se-lhe propício à errância. Desde muito jovem que se habituara a andar sem destino. Os amigos chamavam-lhe carinhosamente Stanton, a partir da sua admiração por um filme dos anos oitenta em que havia uma personagem que caminhava sem destino pelas terras áridas do Texas.
De repente, deixou de estar sozinho. A irmã de Lorenzo viera buscar alguma roupa de cama para poder acomodar convenientemente uns hóspedes que chegariam no dia seguinte. Filipe nunca simpatizara com Ilaria, mas esforçava-se por manter a cordialidade quando se encontrava com ela. No fim de contas, só teria de se relacionar com ela enquanto permanecesse naquele apartamento. Pela manhã, enquanto se dirigia para a Universidade, pensava sempre em Madalena e nos meninos. Aos poucos tinha concluído que eles eram tudo aquilo que o ligava à sua terra natal. Aos poucos tinha compreendido que a sua terra era aquela em que em cada momento se encontrava. Ainda perplexo com a descoberta, pensava na diferença que existe em conjecturar uma situação e vivê-la de facto. Descobrira que facilmente conseguiria sair para qualquer lado a qualquer momento e que o maior peso que teria de carregar seria o de si próprio e das suas constantes inquietações. Tamanha descoberta provocou nele o gosto por olhar do lado de fora as coisas que mais intimamente sentia. Tornara-se um ser silencioso. A disciplina da palavra conhecia-a agora ele intimamente. Sabia que toda a palavra podia ser diferentemente utilizada consoante a situação em que fosse pronunciada.
Era uma vez uma flor que brilhava num terreno baldio. Eu contemplei essa flor. Não que ela possuísse uma cor viva, ou sequer que tivesse dimensões exageradas. Tratava-se simplesmente de uma flor. Num primeiro momento limitei-me a contemplá-la. Aos poucos fui gradualmente dando conta da sua imensa singularidade. Era flor. Apenas fui capaz de a sentir, tocar, cheirar, mas não sabia dizê-la. Até porque aquela flor não me recordava nenhuma outra flor que alguma vez tivesse visto, mesmo que fosse igual a tantas outras. A recordação da imagem daquela flor apenas me trazia à memória um campo verde, inexistente, e o som da voz de um rapaz, ao longe. E música, continuamente música. Gostava de descrever esta ideia de flor que de mim se apoderara, mas não sabia como. Apenas sabia que, para a descrever, teria que determinar os nexos que em mim se criaram entretanto e que estavam fora dela. Isto é, na vontade de mostrar a flor, eu não estava senão a traí-la, porque aquilo que eu nela observava não se encontrava nela, mas numa espécie de mentira que eu sentia como verdadeira. No fundo eu interpretava a flor. Não tenho, no entanto, a certeza de que estivesse a ser mentiroso.
O processo em que desenvolvia a minha observação tinha em conta, mais do que a flor, uma certa imagem que em mim e de mim mesmo eu criara. Em vez de interpretar a flor, interpretava-me a mim próprio. Ou pelo menos interpretava qualquer coisa que existia dentro das minhas recordações. Poder-se-á dizer que, a um certo nível, a flor desempenhou uma função e que se encontrava naquele lugar para provocar em mim uma espécie de memória adormecida.



"Car les impressions suivantes ne le sont plus [originais]. Je collectionnerais pour les romans les reliures d’autrefois, celles du temps où je lus mes premiers romans et qui entendaient tant de fois papa me dire: “Tiens-toi droit!” Comme la robe où nous vîmes pour la première fois une femme, elles m’aideraient à retrouver l’amour que j’avais alors, la beautè sur laquelle j’ai superposé trop d’images de moins en moins aimées, pour pouvoir retrouver la première, moi qui ne suis pas le moi qui l’ai vue et qui dois céder la place au moi que j’étais alors, s’il appelle la chose qu’il connut et que mon moi d’aujourd’hui ne connaît point."

Até que ponto será possível afirmar a necessidade da memória como único meio, única estratégia redentora? Nesta passagem da Recherche, existe uma tese embrionária: a de que a única imagem verdadeira é a primeira, aquela que guardamos de um primeiro encontro, na medida em que, a esta, apenas poderão suceder outras imagens só que reveladoras de uma perda. A perda do momento inaugural. Proust afirma que, na prática, só se nasce uma vez, mas que se pode renascer constantemente. Isto é, a partir do momento em que se afirma no texto que o “moi qui ne suis pas le moi qui l’ai vue et qui dois céder la place au moi que j’étais alors”, é conveniente esclarecer que, de um ponto de vista da “argumentação redentora”, o autor, por mais que aponte para um desfalecimento gradual em relação ao primeiro encontro, ele sabe também que o eu que ele é agora é outro e que, até como forma de minimizar os efeitos da perda, podemos evocar sempre um ser-se outro em que o tempo nos transforma e que nos permite, por sua vez, aceder a uma distância que, separando as diferentes imagens de uma mesma circunstância, obtidas em momentos e em graus diferentes, nos proporciona a possibilidade de um recomeço.
O recomeço, conforme é aqui sugerido, é o espaço vital em que a vida pode continuar, o espaço que permite a verbalização, a narrativa. Talvez seja neste registo que possamos prestar atenção à seguinte passagem de Bloom:

"In una delle sue formulazioni più vicine allo stile di Amleto, Nietzsche afferma che le cose per cui riusciamo a trovare le parole sono già morte nel nostro cuore; nell’atto del parlare vi è dunque sempre una sorta di disprezzo"

Acontece que, de certo modo, a afirmação de Bloom, remete para uma ideia, segundo a qual, apenas seremos capazes de falar daquilo que já sentimos como morto, de coisas mortas. Nesta perspectiva, falar, “trovare le parole”, constitui o gesto redentor por excelência, único capaz de gerar recomeços. Ocorre-me pensar em traumas e superações de situações traumáticas.
No caso concreto de Proust, a estratégia parece ser a de procurar na palavra a possibilidade de, estando em contacto com a morte, ser-se capaz, por um processo de anamnese, vislumbrar aquilo que constitui o presente, partindo de impressões do passado. Estaremos a falar de interpretação do passado e do modo como, por via dessa interpretação do passado, damos conta de como a distância pode ser libertadora, mas também e fundamentalmente das alterações que se verificaram no eu que já fui, de tal modo que se repercutem vivamente no eu que sou agora.

Ampulheta

Imaginei uma ampulheta. Uma ampulheta que media a duração do sono de Alice. Nunca no texto se fala dessa ampulheta e só Alice a conhece. Imaginei esta ampulheta a partir daquilo que, durante a discussão, foi dito sobre “sobrevivência”. Porque sabe da sua existência (da ampulheta), Alice reconhece que o seu tempo de sono está a terminar e, por esse motivo, sabe que tem de acabar com o “recreio” e dar um “murro na mesa”. O tribunal em que Alice se encontra é o melhor dos tribunais, na sua perspectiva, na medida em que, dando a possibilidade a outrem de se sentir juiz, é ela quem de facto determina a sentença final e escolhe o momento para o fazer. Alice é a dona do recreio. É no exercício deste papel que ela reconhece o momento em que tem de intervir de forma a garantir a sua sobrevivência.
A propósito de sobrevivência e interpretação, o colega Pedro (não estou certo que seja este o seu nome), apresentou o exemplo daquilo que decorre de um combate de boxe. Na sua perspectiva, durante um combate de boxe não será possível interpretar o que acontece, na medida em que, ao fazê-lo o pugilista perde o momento e arrisca-se a perder. Eu próprio sugeri a possibilidade de fazer uma antecipação do combate, em termos estratégicos, parecendo-me que, ao proceder-se deste modo, se estará a interpretar por antecipação. Será que podemos interpretar por antecipação?
Como o pugilista, Alice, neste sentido, aproxima-se mais de uma posição em que tem de reagir a acontecimentos imediatos. A táctica do pugilista é ditada previamente, perante o estudo do adversário; a táctica de Alice parece resultar desse facto singular que consiste em ela ser a única criatura que tem conhecimento da ampulheta.
Julgo, então, ter compreendido o sentido das palavras do colega Nuno, quando afirmou que Alice não interpreta os poemas que vão surgindo ao longo da obra. Eu também sinto alguma dificuldade em assumir desde logo uma aproximação entre respostas imediatas a estímulos e interpretações. Mesmo que essas respostas imediatas a estímulos possam envolver uma leitura dos acontecimentos a partir da história pessoal de cada um.
Por esse motivo sugeri a ideia de intuição.
De qualquer maneira, julgo que a discussão mantida ao longo da sessão não terá andado longe de se tentar perceber afinal de contas de que ferramentas nos podemos ou devemos servir quando interpretamos. Mais do que saber das maneiras que podemos ter de interpretar textos, julgo que foi de ferramentas que podemos usar para interpretar que andámos à procura.
Alice, pelo contrário, parece saber que, para interpretar, apenas precisa de uma ampulheta.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Esta voz vem de longe, de muito longe, de lugares que às vezes parecem escondidos e que, de repente, aparecem à nossa frente. Reencontramo-nos com a volúpia de uma sugestão de vibrato, tão suave, tão mansa, tão prometedora.
O desacordo entre alguém que vai directamente ao encontro da palavra e alguém que vai ao encontro de particularidades da palavra, parece ser o centro do problema da distinção entre “uso” e “menção”. As confusões resultantes do confronto destas duas palavras emergem por exemplo da distinção entre nome e coisa em si. Com efeito, quando falamos de menção referimo-nos a descrições, erróneas ou verdadeiras, de coisas; quando falamos de uso, estamos a ter em consideração a coisa, aquilo a que nos referimos especificamente. Deste modo, à menção estará associada a ideia de uma intencionalidade particular, que, por si, é susceptível de criar ambiguidade, uma intencionalidade que apenas naquele que enuncia um discurso é susceptível de encontrar uma justificação. Por sua vez a nomeação, enquanto uso de uma coisa em si, centra-se no objecto observado, em concreto, na sua especificidade particular e geral. Pelos motivos apresentados podemos, então, verificar a relação que pode ser estabelecida entre um rótulo e aquilo a que o rótulo alude. Não sendo necessário que o rótulo espelhe aquilo a que se refere, ele é uma forma de apresentação intencional, que apresenta características particulares da coisa rotulada, não a referindo, contudo, naquilo que ela é em si mesma, mas, partindo de uma característica particular dela extraída, a caracteriza numa determinada perspectiva.
Mesmo correndo o risco de não ser muito exacto, julgo que, num certo sentido, o exemplo das ocorrências habituais da expressão “o material tem sempre razão”, pode ilustrar o que acabo de afirmar. Todos nós já ouvimos em determinadas circunstâncias alguém dizer que “o material tem sempre razão”, nomeadamente quando numa oficina, o mecânico nos explica a razão de um determinado problema no automóvel. Dizer-se que “o material tem sempre razão”, entendido como dizer-se, por exemplo, que “o tubo de escape tem sempre razão”, implica ter em consideração a coisa em si, o tubo de escape, sendo que, no momento em que o mecânico se refere a esta peça do automóvel, não está senão a referir-se a ela especificamente, enquanto origem de um problema. De outro modo, a circunstância de um automóvel circular com um tubo de escape deteriorado suscita, pelo menos o incómodo da vizinhança. O ruído provocado por um tubo de escape estragado pode, em si, sugerir a nomeação do problema através de uma menção, imaginando que, em virtude de o sr. Alfredo ter o tubo de escape do seu automóvel estragado, alguns vizinhos terem passado a referir-se a ele como o “escapes”, ou mesmo a chamar-lhe “escapes”, estabelecendo, deste modo, uma maneira de o mencionarem. Nesse sentido, quando alguém, aludindo ao sr. Alfredo, se refere ao “escapes”, não está a fazer mais do que a apresentar uma designação intencional que apenas é susceptível de ser representada pelo sr. Alfredo.
A um outro nível, podemos imaginar que, com o tempo, a menção “escapes” se possa estender a outras situações e que se venha a tornar, no contexto do sr. Alfredo e dos seus vizinhos, sinónimo de alguém que tem o tubo de escape estragado e, deste modo, apesar de reveladora de uma gramaticalidade questionável, uma afirmação como “o “escapes” vai amanhã ao dentista”, adquire um valor particular que a torna compreensível por todos e cuja tradução se encontra implícita no modo como a palavra “escapes” é utilizada.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Interpretar

Num texto de Italo Calvino existe uma personagem que afirma a sua necessidade de reler os livros, visto que em cada releitura lhe parece ler pela primeira vez um livro novo.
Confrontamo-nos muitas vezes com o facto de o mesmo texto se revelar de maneiras diferentes a cada releitura e, desse modo, um texto que lemos aos quarenta anos aparece-nos como coisa diferente do mesmo texto lido vinte anos antes. O facto é que o texto está lá, não mudou. Aquilo que mudou foi o seu leitor. A leitura, a interpretação é o lugar onde em permanência procuramos estabilizar o nosso entendimento do mundo e dos livros que lemos. Os textos estão fixados apenas pelo envólucro do livro de papel, mas as estratégias interpretativas variam. Ao leitor cabe engendrar estratégias para pôr em discussão o texto e estabilizá-lo numa determinada comunidade de leitores. Interpretar envolve fazer escolhas e nessas escolhas o leitor tem um papel determinante.
Dante propõe no Convivio quatro etapas para a construção de uma interpretação: literal, alegórica, moral e anagógica. Ao assim proceder, ele afirma que existe uma primeira fase na observação de um texto, que passa pela identificação dos significados das palavras, pelo primeiro contacto com o texto. Mais adiante, define como segunda etapa, o sentido alegórico de um texto, a partir do qual se pode intuir um significado aparente. Só posteriormente surgem os sentidos moral e anagógico do texto. A estes dois últimos sentidos estarão associados aspectos relacionados com a experiência do leitor e com a sua maneira de observar o mundo.
A interpretação de um texto envolve, por outro lado, um momento intuitivo, em que a observação, embora partindo do sentido literal do texto, pressupõe uma tentativa de fixação dos problemas que resultam de uma primeira leitura e permite estabelecer as primeiras propostas para a sua resolução. A este momento intuitivo seguir-se-á um momento crítico, que conduz o momento intuitivo a um patamar superior, pondo à prova as intuições provenientes do momento inicial.
A interpretação não existe independentemente da experiência do leitor. Ainda assim, a experiência do leitor é ela própria o produto de um conjunto de assumpções interpretativas. A interpretação é uma actividade em permanente actualização, cabendo ao leitor engendrar formas de validação do sentido do texto, com base na sua experiência pessoal, tendo em vista uma comunidade de leitores específica. Esta validação a que me refiro é fundamental, visto que sem ela, não existe verdadeiramente aquilo a que chamamos interpretação, na medida em que, apesar de se tratar de uma experiência pessoal, uma interpretação requer um reconhecimento, não dos seus argumentos, mas da sua fixação, mesmo que temporária.
Todos nós fomos contactando ao longo da vida com interpretações variadas de textos variados, que não constituíam propostas de leitura, mas uma espécie de assumpção da “leitura verdadeira” de um texto. Este modo de funcionar, facilitava, de certo modo, a tarefa do leitor. Contudo, quem assim procede parece ter a aspiração de fixar definitivamente um texto, como se fosse possível fixar definitivamente a vida. Ora, um dos problemas da interpretação resulta do facto de o terreno em que ela se exerce parecer muitas vezes movediço, sendo que, nessa medida, o papel do leitor que interpreta assume um lugar determinante na sua actualização.