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sábado, 15 de agosto de 2009


sexta-feira, 14 de agosto de 2009

I

Falar de Job é falar de resignação. A resignação pressupõe a ideia de aceitação. Deus decide, Deus actua, Deus é o agente do destino a que, por via da sua condição, o homem está votado, apenas lhe restando o cumprimento de uma tarefa, ou a eventual aceitação do desígnio divino. É esta atitude de aceitação que Wagner repudia[1], considerando-a o grande mal da civilização ocidental. Contudo, será Job um ser resignado? Não creio que o seja, pelo menos nos termos de que aqui me sirvo. Na verdade, o homem feliz, que Job é, vai vendo a sua vida sofrer transformações sucessivas e surpreendentes, se entendidas à luz das suas crenças.
Em Arte e revolução[2], Richard Wagner aponta a resignação cristã como uma enfermidade civilizacional. Nesse texto, Wagner afirma o vigor da Arte, atribuindo-lhe como característica a alegria. Segundo este autor, à alegria provocada pela arte, enquanto entidade libertadora, opor-se-á aquilo que ele considera ser “o desprezo-próprio, a repulsa pelo carácter visível da existência, o horror face à sociedade”. Nesta perspectiva, Wagner coloca-se num ponto oposto àquele em que se situa o discurso do Eclesiastes e o próprio Livro de Job, na medida em que, ao assumir o vigor das acções humanas, ele recusa a ideia de que tudo esteja à partida concebido por acção divina.
À ideia de que a arte é alegria, corresponde a de que arte, no sentido de que Wagner se serve, é vida, a vida em si mesma, enquanto processo vital em permanente evolução e espaço em que se exercita o carácter festivo e luminoso da existência das coisas. No texto citado, Wagner considera que a resignação cristã é o mal maior dos homens, elevado mesmo a um mal civilizacional. Deste modo, para Wagner, o cristianismo impõe uma censura, impõe limites segundo os quais, ao homem, não é possível o entendimento da ideia de felicidade terrena. Enquanto contingência, ao homem apenas se permite o refrear as suas características naturais, a sua condição. Nestes termos, o homem apenas deve aspirar ao «bem» e ao «belo», sabendo que o contacto com qualquer destas circunstâncias lhe está vedado enquanto não ascender ao “Reino dos Céus”. Nesta premissa deverá a vida ser entendida como espaço de restrições.


II

Aquilo a que chamamos saber não é outra coisa do que perceber pela razão[3]

Sempre me intrigou a história de Job, o modo como em termos de exemplo a personagem se destaca pelo seu comportamento temente, mas incapaz de compreender os acontecimentos que se lhe vão deparando. O problema de Job, em grande parte, situa-se ao nível da descoberta da sua ignorância. Nos termos em que Santo Agostinho nos apresenta a ideia de sabedoria[4], poderemos pensar que o Job que tinha uma vida próspera e feliz, por isso sábia, encontra nos sucessivos desaires que o acometem a emergência da sua ignorância, da sua incapacidade para compreender, apenas diminuída pela fé que, apesar de tudo, nunca o abandona. O mistério de Job situa-se, então, no cruzamento entre uma razão que lhe mostra a desgraça e a sua fé que o acompanha e lhe permite uma certa forma de resignação. Por outras palavras, o seu mistério encontra expressão naquilo a que Harold Bloom chama “l’ironia del sublime ebraico, dove realtà assolutamente incommensurabili si scontrano senza soluzione possibile”[5]. Isto é, Job não encontra no seu passado razões para tão grande provação, para tão grande castigo. Por esse motivo se interroga:

De onde, pois, procede a sabedoria? E em que lugar se encontra a inteligência? Está vedado aos olhos de todos os viventes enxergá-la, até das aves do céu se oculta.[6]

Contudo, o próprio Job formula uma resposta reveladora de uma resignação, que apenas encontra na necessidade de compreender o que não é susceptível de ser compreendido senão pela fé, quando afirma que Ele então a viu [a sabedoria] e a deu a conhecer. Estabeleceu-a e esquadrinhou-a. Ao homem proclamou: “O temor do Eterno é a sabedoria, e saber apartar-se do mal é a inteligência.”[7] De qualquer modo, Job não compreende o motivo de sobre ele se ter verificado a alteração do modelo da relação entre pecado e punição em que julgava assentar a vida dos homens, perante o facto de sobre ele próprio ser exercida uma variante nova desta relação, segundo a qual ao protagonista não basta ser um homem honesto, temente a Deus e cumpridor da Sua vontade[8]. Job não sabe que os acontecimentos que sobre ele vão sendo lançados decorrem de um acordo feito no céu. Esta circunstância, não apenas abre uma leitura diferente acerca da vida e das regras de conduta a seguir, não apenas para Job, entendido individualmente, mas também para o leitor do texto e, apesar de para o protagonista a resposta, tal como vimos anteriormente, residir na obediência às regras reveladas por Deus, o facto é que até a própria Bíblia revela noutros textos respostas diferentes para o modo de encarar a vida e o sofrimento dela decorrente.
O exemplo de Job pode ser entendido no âmbito de um processo que decorre da sua especificidade em lidar com o infortúnio. Job, embora assediado naquilo que são as suas qualidades mais profundas, não desiste de acreditar, não desiste de pensar que não é iníquo, mesmo quando recorre à memória. É deste modo que Job aceita o desafio que lhe é lançado por Deus e, num certo sentido, se insere numa tradição que encontra, por exemplo em Abraão e em Jacob, os seus antecedentes[9].

III

Em Dia, de Elie Wiesel, parece dar-se uma actualização de Job, centrada na figura do protagonista. Com efeito, Eliezer, a personagem central, depois de ouvir o médico que o assistia dizer-lhe que era “preciso agradecer a Deus”, em virtude da recuperação favorável que tinha manifestado a um acidente, afirma: - Como se faz para agradecer a Deus?, e pensa: agradecer-lhe porquê? Já há muito tempo que eu deixara de compreender o que é que ele, o bom Deus, tinha feito para merecer o homem[10]. Acontece, porém, que esta actualização de Job, no sentido em que, enquanto neste a incompreensão perante os acontecimentos não perturba a sua fé, dá-se na exacta medida em que o protagonista de Dia encontra na experiência da memória a sua adequação ao silêncio. No caso de Eliezer, a incompreensão manifesta-se perante o facto de serem os homens os capatazes de um Deus adormecido, que, deste modo, abandona os seus, deixando-os à mercê de uma dupla punição: a que lhes é infligida pelos seus carrascos; e aquela que deriva da vergonha de ter sido escolhido pelo destino[11]. A ideia do protagonista do livro de Elie Wiesel é a de que Deus precisa do homem[12], na medida em que é necessário o exemplo para determinar uma espécie de aprendizagem do sofrimento e do modo como ao sofrimento o homem pode reagir. No caso de Job, a imagem é a da resistência absoluta na adversidade. Contudo, a experiência do protagonista de Dia é a de quem observou a luta sem tréguas pela sobrevivência e que a tudo se prestou para obter um naco de pão[13]. Por isso, Os outros, os que vão até ao fim do seu destino, já não ousam olharem-se no espelho, com medo que ele reflicta a sua imagem interior: a de um monstro que ri das mulheres infelizes e dos santos que estão mortos…[14]
É deste modo que Eliezer se considera um morto-vivo. Tal como aqueles que sobreviveram, enfrenta as penas de um sofrimento que não encontra forma de terminar. Os que já não ousam olharem-se no espelho são os mesmos que, tendo sido vítimas, participaram do sofrimento daqueles a cuja morte assistiram. O momento em que o médico pergunta a Eliezer a razão pela qual ele não quer viver corresponde à apresentação da personagem diante de si própria, visto que, reconhecendo a sua incapacidade para fazer compreender os segredos que guarda consigo, ele não deixa de escutar o apelo doloroso da sua memória e de acontecimentos que só podem ser compreendidos por alguém que os tenha vivido[15]. É este o estigma que marca Eliezer e os outros mortos-vivos, o seu segredo e a razão para que o protagonista se refugie na mentira piedosa para responder ao médico que o assiste. De qualquer modo, a matéria surpreendente que daqui decorre resulta do facto de a vítima que sobrevive à tragédia carregar consigo a marca do remorso.
Em The Discovery of the mind[16], ao afirmar que “de acordo com a teoria eudaimonística de ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da infelicidade”, Bruno Snell sugere que à ideia de felicidade pode associar-se, não apenas uma ética, mas também uma necessidade de fazer escolhas e de estabelecer estratégias. Com efeito, quando defende que, “de acordo com a teoria eudaimonística de ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da infelicidade”, não será estranho imaginar que ao conceito de remorso se encontre associado o de culpa, na perspectiva de Bruno Snell. O conceito de uma culpa, cuja consciência permite estabelecer os limites da felicidade e da infelicidade.

IV

A mentira provocada pela necessidade de sobrevivência ao medo está presente também em textos como as pequenas narrativas de Ida Fink, em A Scrap of time[17]. È esse o motivo central do conto «The Key Game», concretizado na resposta final da criança ao jogo que decorria em família. Com efeito, aquela família que nos é apresentada na aparência de uma normalidade, vive escondida tendo como único objectivo a sobrevivência dos seus membros. É também de sobrevivência e do medo permanente e silencioso que nos fala Lawrence L. Langer[18], quando cita Dawid Sierakowiak:

What kind of world is this and what kind of people are these who are able to inflict such unbelievable and impossible suffering on living beings?
Our nearest ones have been murdered, some by starvation, some by deportations (modern civilian death). In a manner unheard of in history, we’ve been crippled physically, spiritually, emotionally – in our whole personality. We vegetate in the most horrible misery and need; we are slaves who, deprived of our own will, feel happy when we’re being trodden upon, begging only that we not be trodden to death. I don’t exaggerate: we are the most wretched beings the sun has ever seen – and all this is not enough for the “strong man”: they continue deporting and tearing our hearts to pieces – while we’d be happy to live even as enslaved, wretched insects, as abject, creeping reptiles – only to live… live…
[19]

Num certo sentido, a voz de Job ecoa nas palavras de Sierakowiak. O sofrimento que aqui é descrito tem paralelo com o da personagem bíblica e reflecte a incapacidade de compreender, pondo em questão o conceito de sabedoria. Apesar de em ambos os textos existirem dimensões diferenciadas de esperança, o facto é que, tanto num como no outro, parece ser a fé a instância capaz de fazer acreditar que o sofrimento pode abrir a janela de uma eventual redenção. Em Job, porque, apesar de submetido a tanto suplício, ele não cede à tentação de afrontar Deus; em Sierakowiak, na medida em que as reticências finais desta passagem e o facto de em nenhum momento o sofrimento ser atribuído a Deus, mas sim aos homens, permitem, pelo menos no domínio das probabilidades, considerar a possibilidade de uma saída, por mais remota que seja.
O medo não acompanha, contudo, Job. Movido pela sua fé, Job apenas procura uma explicação. No entanto, nos textos de Sierakowiak, de Elie Wiesel, ou de Ida Fink é o medo em diferentes formas de se exprimir que conduz as personagens e as situações. É o medo que move a criança, quando responde “He’s dead”, depois de a interpelarem acerca do seu pai. É o medo de o sofrimento não ter fim que move as personagens no texto de Sierakowiak. É o medo de agitar o passado que faz com que esse mesmo passado permaneça, em silêncio, em Eliezer.

No fundo, todas estas personagens parecem ter sido de facto abandonadas por Deus. O Deus que soube remediar o que tinha feito a Job. No fundo, apenas Job encontra a redenção, cumprindo o seu percurso em direcção ao saber[20]. A recompensa final que Job recebe é o reconhecimento da sua virtude. Contudo, o mesmo não acontece com as outras personagens, nomeadamente com Eliezer, a quem nem sequer a perspectiva de uma indemnização é capaz de o fazer esquecer o passado. Um passado em que a criança que ele foi está sempre presente e que apenas num momento de Dia é resgatada: quando, a propósito do nome da sua mãe, o protagonista, dirigindo-se a Kathleen, afirma:

(…) criança, vivi no receio constante de esquecer o nome da minha mãe depois da morte. Na escola, o meu mestre tinha-me dito: três dias após o teu enterro, um anjo virá bater três vezes na tua sepultura. Ele perguntar-te-á o teu nome. Tu responder-lhe-ás: «Eu sou Eliezer, filho de Sarah.» Infeliz se te esqueces dele! Alma morta, tu ficarás na terra por toda a eternidade.[21]

O retrato cruel do despojamento absoluto encontra deste modo a resistência das raízes que prendem o protagonista à terra e que, através da memória, lhe permitem emergir dos escombros de si próprio em busca de uma redenção.
[1] WAGNER, Richard, A Arte e a revolução, Edições Antígona, Lisboa, 1990, pp.47-48.
[2] idem.
[3] AGOSTINHO, Diálogo sobre o livre arbítrio, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. «Estudos Gerais», Lisboa, 2001, página 107.
[4] AGOSTINHO, ob. cit., “considerando-se o ser humano absolutamente infeliz se lhe for tirado o brilho da boa reputação, as riquezas, ou qualquer tipo de bens corporais, não julgarás tu que ele é absolutamente infeliz, se nele residir aquilo que, com toda a facilidade, se lhe pode tirar, e que não tem quando quer, ainda que abunde em todas aquelas outras coisas, carecendo, no entanto, da boa vontade, que não tem comparação com esses bens, e que, sendo um bem tão grande, basta tão-somente que se queira para se possuir? (…) Portanto, é com razão e justiça que os homens estultos sofrem tal infelicidade, embora nunca tenham sido sábios – o que não é certo e é uma questão muitíssimo obscura.” (páginas 121-123).
[5] BLOOM, Harold, Rovinare le sacre verità, Poesia e fede dalla Bibbia a oggi, Garzanti Editore, Milão, 1992, página 14.
[6] Job, 28: 20-21.
[7] Job, 28: 27-28.
[8] Job, 30: 24-26 e 31: 3-4.
[9] BLOOM, Harold, ob. cit. p. 31.
[10] WIESEL, Elie, Dia, Texto Editora, Col. «Grandes Autores», Lisboa, 2004, p. 18.
[11] idem, p. 40.
[12] idem, p. 41
[13] idem, p. 47
[14] idem, p. 48.
[15] idem, p.74: “Eram uma dezena no bunker. Noite após noite, eles ouviam os cães-polícia alemães que, nas ruínas, procuravam os judeus escondidos nos seus esconderijos subterrâneos. Shmuel e os outros viviam quase sem água nem pão, quase sem ar. Eles resistiam. Eles sabiam que, ali em baixo, na sua prisão estreita, eram livres: lá em cima, era a morte. Uma noite, esteve a ponto de se dar uma catástrofe. A culpa era de Golda. Ela tinha levado o seu filho com ela. Uma criança de mama com poucos meses. O bebé começou a chorar, colocando assim a vida de todos em perigo. Golda tentou acalmá-lo, adormecê-lo. Em vão. Então, os outros, aos quais Golda também se tinha juntado, voltaram-se para Shmuel e disseram-lhe: «Fá-lo calar--se. Trata dele, tu cuja profissão é degolar pintos. Saberás fazê-lo sem que ele sofra muito.» E Shmuel rendeu-se à razão: a vida de um bebé contra a vida de todos. Ele agarrou na criança. No escuro, os seus dedos tacteantes tinham procurado o pescoço. E tinha-se feito silêncio no céu e sobre a terra. Só os cães tinham continuado a ladrar, ao longe.”
[16] SNELL, Bruno, The Discovery of the mind in greek philosophy and literature, Dover Publications, Inc, New York, 1986, pp.163-164.
[17] FINK, Ida, «The Key Game», in A Scrap of time and other stories, New York, Pantheon, 1987, páginas 35-38.
[18] LANGER, Lawrence L., «Opening Locked Doors, Reflections on Teaching the Holocaust», in Preempting the holocaust, Yale University Press, Yale, 1998, páginas 187-198.
[19] idem, página 192.
[20] Job, 42: 2-3: “Sei que podes fazer tudo e que nenhum propósito de Ti pode ser oculto. Quem negaria Tua justiça sem conhecê-la? Por isto falei do que não compreendia, coisas, para mim, por demais prodigiosas, e que eu ignorava.”
[21] WIESEL, Elie, ob. cit., página 84.

sábado, 8 de agosto de 2009

Existe uma inevitabilidade que percorre o seu caminho. Uma inevitabilidade que nos mantém a todos ligados, mesmo que apenas pelas recordações que experimentamos. Existe a inveitabilidade de querer ser outro sendo o mesmo, de fugir, mesmo quando a dor provocada pelo corte se revela imensa e ao mesmo tempo delicada. Fugir à inevitabilidade parece ser a ilusão suprema, a ilusão. Contudo, não se pode fugir da ilusão, do mesmo modo que não se pode fugir dos laços que vamos criando sem dar conta, com as pessoas que nos acompanham, mesmo quando fisicamente distantes, com as nossas histórias particulares. Há quem cresça até à adolescência... há quem nunca consiga parar de crescer... há mesmo quem nunca cresça... Mas nunca se cresce sozinho.
A paisagem não nos permite crescermos sozinhos e isso é bom. O importante é a palavra, mesmo que não seja dita. O importante é trazermos a palavra dentro de nós, para que possamos tornar a ilusão menos penosa.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Para o Professor M. S. Lourenço, que me ensinou a ouvir Richard Wagner.

Siegfried Funeral March

Acabou o Sol & o sino da tarde leva
Os deuses, um a um, a um passeio provisório,
Donde irão emergir para o grande cisma
Do Inverno, o primeiro sopro do qual
Já se ouve subir os píncaros da serra.
Para a deusa branca chegou o fim do seu enigma,
A sua ruína coroa agora as ruínas do castelo:
Aqui morrem os deuses & as borboletas.
Rejeitados olhamos apenas,
Recíproco, um brilho no vazio.

M. S. Lourenço, in Nada Brahma